O terror, o caos, a destruição, a conjuntura política e o papel determinante dos movimentos estudantis na ajuda à população que foi devastada com as cheias de novembro de 1967 foram esta terça-feira, 28 de novembro, recordados numa conferência no Técnico promovida por antigos dirigentes associativos. O programa vasto, com vários intervenientes e muitas histórias para contar deixava antever uma larga adesão, e assim foi. Participantes de várias idades preencheram as dezenas de cadeiras do salão nobre e viajaram 50 anos no tempo através das memórias e sapiência dos oradores.
A chuva começou a cair na madrugada de 26 de novembro, e não parou durante três dias. Com uma força inesperada, incontrolável, como até à época não havia memória, a enxurrada arrastou árvores, animais, pedras, carros, e casas com famílias inteiras lá dentro. Todo o distrito de Lisboa foi afetado, mas sobretudo as localidades de Odivelas, Oeiras, Cascais e Alenquer e os concelhos de Loures e de Vila Franca de Xira. Mais de 700 pessoas morreram, embora o governo tenha exigido que se parasse de contar quando o número chegou aos 400 óbitos. Foram pormenores como este, e outros tantos, que foram revelados no primeiro painel da conferência que contou com a professora Luísa Tiago de Oliveira, professora e investigadora do ISCTE na área da história contemporânea, e pelo José Pacheco Pereira, criador do Arquivo/biblioteca Ephemera. “As cheias geraram, entre tantas outras coisas, um misto de humanismo e de responsabilidade social tremendos. Os estudantes tiveram um papel reativo perante tudo o que estava a acontecer e isso foi fulcral”, afirmava José Pacheco Pereira. “A complexidade da história é pedagógica para os mais novos e por isso faz todo o sentido estarmos aqui”, acrescentou.
Da parte da tarde, o painel assentou na perspetiva de três especialistas que se têm debruçado sobre o estudo deste marco histórico: o professor Francisco Costa do Departamento de Geografia da Universidade do Minho, o professor José Luís Zêzere do Centro de Estudos Geográficos da Universidade de Lisboa e Manuel Costa Alves, meteorologista e antigo dirigente estudantil.
Chegou depois a altura de a palavra ser passada àqueles que foram um dos apoios dos protagonistas: os estudantes. O engenheiro Armindo Fernandes, antigo dirigente da Associação dos Estudantes do Instituto Superior Técnico (AEIST), narrou toda a intervenção levada a cabo pelos estudantes do Técnico.“Os estudantes ajudaram a recuperar o recuperável, e a limpar o irrecuperável”, partilhou. No seu discurso emotivo, pautado por muitas palavras tocantes, não faltaram números. “Foram apoiados 17 locais, durante mais de 44.000 horas de trabalho. Cerca de 400 estudantes estiveram envolvidos em toda a ação”, vincou. Demonstrando a forma indelével como esta ação marcou os estudantes, afirmou “o orgulho que ainda hoje invade os envolvidos por terem prestado esta ajuda”.
A mesma ideia foi assinalada por Francisco George, médico, antigo dirigente da Pró-associação de Medicina e um dos envolvidos neste movimento estudantil de socorro às vitimas das cheias. “Apesar das más memórias, não hesitei em confirmar a minha presença aqui”, começou por explicar. O médico ainda se lembra da intensidade da chuva que caía quando entrou “no Cinema Império para a sessão da noite” e que continuava a cair de “forma igualmente copiosa” quando saiu. Questionou-se várias vezes no caminho para casa de quando iria aquilo acabar. “Só no dia seguinte percebi os efeitos de tudo aquilo”, narrava. Relativamente à ajuda prestada pelos estudantes, asseverou que “o apoio foi algo muito discutido e não foi unânime avançar com o mesmo. “Afinal estávamos em plena ditadura o que fazia hesitar muita gente”, justifica. “Devemos atribuir todas as responsabilidades à política e à pobreza”, finalizou Francisco George.
A sessão não teria o mesmo peso sem o testemunho de Maria Luísa Fajardo, sobrevivente das inundações. Com a voz embargada pela emoção, e com peso das memórias bem visível na sua expressão. Foi parca em palavras, mas lembrou “a dor dos pais pela perda dos bens e por não saberem dos nossos familiares”. Maria tinha apenas 13 anos quando tudo aconteceu e as sequelas que a tragédia deixou na sua vida foram profundas: “a minha mãe ficou muito transtornada com tudo o que aconteceu, perdeu os pais e uma filha. Eu tive que reagir e fazer-me à vida”, contava a sobrevivente.
Um dos momentos mais comoventes de toda a sessão, foi a passagem do vídeo que retratava os estragos, a dor, o caos a destruição e até a morte. A película não tinha som, nem era preciso. A sonoridade das imagens dizia tudo.