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Jorge Dias de Deus (1941-2021), o professor mobilizador que se “divertia a fazer e divulgar a Física”

O professor catedrático jubilado do Técnico faleceu esta segunda-feira aos 79 anos, vítima de doença prolongada.

O físico Jorge Dias de Deus, professor catedrático jubilado do Instituto Superior Técnico, morreu esta segunda-feira aos 79 anos, mas deixa um legado científico que o perpetuará. O seu conhecimento, brilhantismo, visão ampla e multidisciplinar do mundo ecoam nas recordações dos que com ele aprenderam e investigaram. Além de um professor mobilizador, um físico brilhante, foi também um ativo divulgador de ciência, sendo sempre inspirador em tudo o que fazia, pela dedicação com que o fazia.

Para os amigos – e tinha tantos –  era o DD. Entre as suas muitas qualidades destacam-lhe a inteligência, desvendam-lhe o humor agudo, elogiam-lhe a habilidade para conviver, e definem-no na capacidade de pensar e imaginar o futuro.

O presidente do Técnico, professor Rogério Colaço frisa que o professor Jorge Dias de Deus foi “um académico brilhante e exemplar, em todas as vertentes: científica, pedagógica, cultural, ética e humana”. “Foi um exemplo a seguir por todos nós, enquanto seus discípulos, seus colegas e seus amigos”, acrescenta, partilhando a “profunda tristeza com que o Instituto Superior Técnico, instituição da qual foi presidente e à qual dedicou a sua vida de corpo e alma, o vê agora partir”.

Natural de Vila Fernando, concelho de Elvas, Jorge Dias de Deus foi, antes de tudo o que se seguiria, aluno do Técnico, frequentando o curso de Engenharia Química. Ainda enquanto aluno assumiu também o desafio de ser presidente da Associação de Estudantes do Instituto Superior Técnico (AEIST) em plena ditadura, no biénio de 1963/64.

Rumaria ao Imperial College de Londres para o doutoramento e seguiria depois para Copenhaga, especializando-se em Física de Partículas. “Em 1973 em Copenhaga, desenvolveu a ideia de escala geométrica que deu novas pistas para as leis de escala de partões, ou seja, quarks e gluões, os constituintes principais dos protões e neutrões”, lembra o professor José Sande Lemos, docente do Departamento de Física (DF) e presidente do Centro de Astrofísica e Gravitação (CENTRA).

Voltou alguns anos depois “para fazer trabalho de primeiro nível em várias frentes”, tal como refere o professor José Sande Lemos, que chegou ao Técnico em 1996 pela “mão” do professor Jorge Dias de Deus, nessa altura presidente do Departamento de Física. “A minha formação em Física tinha sido no Rio de Janeiro e em Cambridge e o destino reservou-me a sorte de ser convidado diversas vezes pelos irmãos e professores Ana Mourão e José Mourão a partir de 1992 para lecionar e colaborar no Técnico. Jorge Dias de Deus que era líder dos investigadores desse grupo que se estava a formar gostou do meu trabalho e em 1996 fui contratado para os quadros do Departamento de Física”, recorda.

Desses tempos e de todos os outros que passaria com ele no CENTRA, estão-lhe bem presentes as várias e admiráveis facetas do professor Jorge Dias de Deus: “era muito ativo, tinha sempre ideias para empreender, tinha vontade de inovar, e era um físico, pensava a física tentando apreender os seus profundos mistérios, como por exemplo, em que nível conceptual as forças de interação fraca, eletromagnética e forte entre partículas elementares devem ser unificadas”, partilha o professor José Sande Lemos. “Como professor ele mostrou ser um físico a sério, pois dava cursos em áreas muito diferentes da física”, lembra ainda.

“Divertia-se a fazer e a divulgar a Física”

O professor Mário Pimenta, docente do Técnico e presidente do Laboratório de Instrumentação e Física Experimental de Partículas (LIP), ainda era aluno quando conheceu o professor Jorge Dias de Deus. Recorda-se bem da primeira conversa que teve com ele, e de como a mesma seria um prenúncio da ligação de partilha de conhecimento que estabeleceriam. “O Dias de Deus foi uma das primeiras pessoas que o professor Mariano Gago tentou captar para irem para o Departamento de Física”, rememora o docente.

Depois de acabar o curso, o professor Mário Pimenta tornar-se-ia professor assistente do curso de eletrotecnia e beberia do conhecimento do professor Jorge Dias de Deus. “Quando comecei a trabalhar com o professor Mariano Gago, e por não ter uma formação estruturada em Física- uma vez que me tinha licenciado em eletricidade, ele disse-me que tratava de mim na parte experimental e a que a parte teórica ficava a cargo do Jorge Dias de Deus.  Enquanto o  professor Mariano Gago me dava livros para estudar, o DD dava-me artigos científicos”, recorda o presidente do LIP.

Foi numa dessas vezes em que o professor Jorge Dias de Deus lhe entregou um artigo com dados experimentais e o desafiou a fazerem juntos um modelo. “Levei aquilo para casa e comecei a fazer umas combinatórias. Uns tempos depois vim para o CERN e deixei em cima da minha secretária IFM [Instituto de Física e Matemática] as contas que tinha feito ao longo dessas semanas. Passado pouco tempo, recebi um envelope com as minhas contas transformadas num artigo científico que ele tinha escrito. Foi o meu primeiro artigo científico em 1981”, conta o professor Mário Pimenta.

Seguiram-se inúmeras colaborações científicas que se estenderiam a uma forte amizade. “O meu último artigo com o Dias de Deus foi de fenomenologia, era uma das coisas que me divertia muito fazer, e data de 2010 ou 2011”, recorda o presidente do LIP. Sobre estes largos anos de companheirismo científico e pessoal, sublinha o gosto do seu amigo “em ser confrontado com algo que ninguém percebia e de tentar explicá-lo num modelo com poucos parâmetros. Divertia-se a fazer e a divulgar a Física”. “Havia poucos teóricos em Portugal, ainda hoje não há muitos, que gostassem de experiência, de dados, que percebem que a Física é experimental. Ele era muito atento aos resultados experimentais. Para ele, o grande desafio eram os resultados experimentais”, acrescenta.

Também para o professor Mário Pimenta eram muitas as qualidades que diferenciavam o histórico docente do Técnico, e as primeiras que lhe ocorrem quando o lembra são a “a curiosidade, e a capacidade de levar as pessoas a sério”. “O Dias de Deus adorava conversar e conviver, estava sempre disponível para as ideias mais abstrusas que as pessoas tinham”, adiciona.

O contributo determinante no Departamento de Física

O seu papel no DF é lembrado por quase todos os que dele fazem parte, como, aliás ,ficou bem expresso na celebração dos 40 anos do departamento, onde o nome do professor Jorge Dias de Deus e o seu trabalho foram por diversas vezes lembrados. Como presidente do DF exerceu dois mandatos (1987-1989 e 1995-1998), mas os seus contributos foram muito para além destas lideranças.

O professor Vítor Cardoso, atual presidente do DF, frisa que “o professor Dias de Deus é uma parte fundamental do Departamento de Física, do Técnico e do país. Era difícil ser de outra forma, porque ele criou a estrutura na qual nós assentamos hoje”.  Mais do que realçar os vários papeis que executou com brilhantismo no DF, no Técnico e no CENTRA e que considera “determinantes”, o professor Vítor Cardoso refere-se a “algo mais universal”.“O professor Dias de Deus deixou connosco, bem firmes, os alicerces da ciência em todas as vertentes. A curiosidade pelo saber, o humanismo e a candura com que temos que interrogar e tentar entender o mundo”, declara o presidente do DF.

“É sempre raro conhecer alguém maior do que a vida, o DD era certamente uma dessas pessoas. As sementes da ciência, que ele plantou, felizmente germinaram e bem. Temos hoje uma sociedade que percebe e gosta de ciência, em larga medida devido ao seu talento e amor pela reflexão, pela divulgação, e pelo ensino”, acrescenta ainda o professor Vítor Cardoso.

O nome do professor Jorge Dias de Deus é indissociável de uma visão inovadora sobre o ensino da Física no Técnico, mas não só.  Foi da sua mente que nasceram três dos cursos que cativam os melhores alunos do país: Engenharia Física Tecnológica, Engenharia Aeroespacial e Engenharia Biomédica. Chegou a ser também presidente do Técnico entre 1991 e 1992.

Era um defensor acérrimo do valor da investigação numa escola, como, aliás, deixaria bem expresso num texto que escreveu para uma edição especial da revista “Técnica” que comemorava os 80 anos do Técnico. “A investigação científica e tecnológica- por vezes vista por alunos menos atentos como mania dos docentes- é igualmente importante para que o Técnico possa acompanhar- e contribuir-  para o crescimento exponencial da Ciência e da Tecnologia, e desenvolver aquele espírito criativo e crítico que está sempre aberto à inovação e que é essencial nas sociedades modernas”, advogava. “A escola superior de hoje, que não faça investigação científica e tecnológica, acabará sempre por ser a escola secundária, com matérias mais avançadas, mas sem dúvida a escola secundária, de amanhã”, pode ler-se ainda.

Um físico versátil e multidisciplinar

O professor Jorge Dias de Deus vinha da Física de Partículas, mas a sua visão não tinha muros, só futuro, e percebendo a ligação da física de partículas à astrofísica, criou em 1994 o Centro Multidisciplinar de Astrofísica, agora Centro de Astrofísica e Gravitação(CENTRA), e que presidiu durante vários anos. A propósito do nome inicial do CENTRA, que incluía a palavra “multidisciplinar”, a professora Ana Mourão, docente do DF e também cofundadora do centro de investigação, frisa que este era também outro traço bem marcado do professor Jorge Dias de Deus. “Gostava do multidisciplinar. Era todo multidisciplinar”, salienta a docente.

“Embora ele fosse um físico de partículas elementares, percebeu que o futuro estava em astrofísica, gravitação e cosmologia. Começou então a fomentar um grupo interdisciplinar, que se tornaria um centro, que pudesse admirar e investigar estas coisas”, afirma o professor José Sande Lemos.

O CENTRA tem agora 27 anos e é um centro de investigação de referência, tendo investigadores envolvidos nos mais grandiosos projetos de astrofísica. “Ele mostrou estar 100% certo”, realça o professor José Sande Lemos, realçando que a área científica deste centro de investigação “recebe atualmente um prémio Nobel quase a cada dois anos, o último tendo sido em 2020 para buracos negros”.

Em 2011, o CENTRA homenageou o seu fundador com uma conferência que celebrou o 70.º aniversário de Jorge Dias de Deus, “mostrando a sua versatilidade e multidisciplinaridade em muitas áreas”. Este ano, no próximo dia 6 de março, os seus 50 membros reúnem-se numa cerimónia de “evocação e agradecimento ao trabalho desenvolvido por Jorge Dias de Deus na fundação do CENTRA”, avança o professor José Sande Lemos.

A educação permanente através da divulgação científica

Para além da sua brilhante carreira científica, Jorge Dias de Deus dedicou parte da sua vida à divulgação da Física através de palestras, livros de divulgação e de introdução à Física pelos quais é conhecido entre um público alargado.

Foi exatamente através de um livro que a professora Teresa Peña, docente do DF e do Departamento de Engenharia e Ciências Nucleares(DECN) e atual presidente do Conselho Pedagógico (CP), teve o primeiro contacto com a sua sapiência. “Conheci-o antes de o conhecer através do livro ‘Ciência, Curiosidade e Maldição’, que li quando estava a fazer doutoramento”, relembra. “Nesse livro o DD mostra que a Ciência, através das aplicações, da Tecnologia e da Engenharia, nunca é neutra. O livro expõe a contradição profunda da ciência, em particular no impacto através da tecnologia, na vida de todos”, realça a professora Teresa Peña.

A docente do DF cita uma das ideias que reteve do livro e que considera tão atual: “A ciência liberta, resolve problemas humanos e cria problemas humanos: ‘é a fada boa (…) por outro lado, (…)  é a fada má (..) que manipula, que corrompe, que destrói’, escreveu o Dias de Deus”. “Por exemplo, a revolução digital de base na Física, é fantástica. Pode mesmo transformar-nos em “homo” Deus. É muito mais revolucionária que a invenção da Imprensa de Gutenberg foi, mas também traz uma maldição. Por exemplo, nas redes sociais, há pessoas  enganadas ao nível de grandes escolhas , em processos eleitorais, enganadas até para as suas decisões pessoais. Estas coisas mostram que a justiça ou a ética não podem ser separadas da ciência. Percebi isto muito cedo com esse livro”, destaca a docente do DF.

Mais tarde, conheceria o autor do livro que a marcou no Técnico, e acabariam por escrever várias coisas juntos,  incluindo 2 livros, textos de divulgação na Gazeta de Física, revista da Sociedade Portuguesa de Física e um artigo científico. “Fizemos também vídeos de Física para a RTP2”, lembra a docente do DF.

A professora Teresa Peña lembra o quanto o DD apreciava a boa mesa. Era no decorrer de almoços e petiscos que nasciam e se organizavam as iniciativas: livros, artigos, propostas de novos cursos no Técnico, etc. Seria num desses almoços que o professor Jorge Dias de Deus lhe lançaria o desfio de escrever o “Einstein, Albert Einstein” (Einstein visto como o James Bond da Física).  “O índice do livro foi escrito num guardanapo em menos de uma hora no fim de um almoço”, narra a presidente do CP. “’Não sabemos muito sobre a vida de Einstein”, disse-lhe a professora Teresa Peña. “Não faz mal, fazemos perguntas e vamos procurar as respostas’”- respondeu-lhe. Nesse ano celebrava-se o centenário do “annus mirabili” dos artigos de Einstein — entre outros o do fenómeno que está na origem das células fotoeléctricas hoje usadas de forma generalizada. “Cada capítulo do livro é uma pergunta”, refere a docente do DF.

Antes disso, já tinham escrito juntos o livro de ensino “Introdução à Física”. “O DD juntou várias pessoas, muito diferentes, o Mário Pimenta, o Pedro Brogueira e a Ana Noronha e eu, para preparar esse livro visando a Engenharia Informática. O Professor Tribolet tinha ‘encomendado’ ao DD um ensino diferente da Física para esse curso. Assim, saiu a “Introdução à Física” que esteve à frente do seu tempo, mesmo em termos internacionais”, recorda a professora Teresa Peña. Quando levou um resumo da obra e das suas linhas orientadoras a uma reunião europeia “a reação foi tal que me incluíram de imediato numa equipa internacional para escrever um outro, agora de Física Nuclear: ‘Nucleus: A trip into the heart of matter’ , publicado pela Johns Hopkins. O meu trabalho com o DD teve efeitos multiplicativos”, assinala a docente.

Sobre este gosto e talento para a divulgação científica, a professora Ana Mourão lembra a participação do professor Jorge Dias de Deus na iniciativa 100 Horas de Astronomia, no Ano Internacional da Astronomia, em 2009, que levou vários investigadores do CENTRA a seis ilhas açorianas dos grupos Central e Ocidental. “Deu uma palestra pública à noite em Santa Cruz das Flores, o ponto mais ocidental de Portugal, com a mensagem de que é preciso ultrapassar barreiras: nós ultrapassamos as barreiras que havia e o oceano para nós é pequeno. Isso mostra bem quem ele era”, declara a docente do Técnico, “Ele alinhava em tudo e apoiava todos os projetos por mais doidos que fossem aparentemente”, vinca.

Para a presidente do CP “trabalhar com o DD era uma alegria, não era trabalho. A liberdade e a imaginação eram os princípios de base da colaboração com ele”.  De todos os ensinamentos que retirou desta inspiradora colaboração fica-lhe um em especial, que nos diz tanto sobre Jorge Dias Deus: “‘A Luta continua’. Nas derrotas e nos sucessos, era com esta frase que ele fechava os ‘dossiers’. Nunca desistir ou parar”.

Voto de pesar da Assembleia de Escola  do Instituto Superior Técnico pela morte do professor Jorge Dias de  Deus.