Imagine-se a sair de casa, num dia soalheiro de primavera, para um passeio de bicicleta com amigos, está em plena ciclovia, a cumprir todas as normas, e acaba por ser atropelado. Acontece com mais frequência do que possamos supor. Que o diga Miguel Sampaio Peliteiro, um médico que teve o azar de ser brutalmente atropelado numa ciclovia na Póvoa de Varzim, em maio de 2020. Ao acidente seguir-se-iam três semanas em coma, dois internamentos e um duro processo de reabilitação que se estende até hoje, com algumas melhoras pelo caminho, mas também sequelas. O jovem médico voltou a andar e a pedalar, e faria deste acidente uma causa e um exemplo que tudo fará para que não se repita.
Encontraria o aliado perfeito para concretizar esta missão numa notícia que dava a conhecer a distinção de Luís Rita, antigo aluno do Técnico, distinguido pelo “Top Talents Under 25”. Nos parágrafos que davam a conhecer o trajeto de excelência do engenheiro biomédico, Miguel Sampaio Peliteiro conheceu o trabalho de mestrado desenvolvido por Luís Rita relacionado com o mapeamento de zonas de risco para ciclistas. “Enviou-me uma mensagem a dizer que não podia deixar na prateleira o meu trabalho de mestrado ‘Become a Better Cyclist with Deep Learning’ – dizia-me que o projeto era genial, queria que o levássemos para a frente, implementá-lo no mundo real”, recorda Luís Rita.
Seguir-se-ia uma conversa no Skype que tornaria claro “que, com o contributo de ambos, a ideia tinha potencial para andar. Foi como um clique”, tal como relembra o alumnus do Técnico. “No dia seguinte a termos falado pela primeira vez já estávamos de mangas arregaçadas a reunir com referências nacionais da área da mobilidade e planeamento urbano”, relata Luís Rita. O empenho e entrega dos dois jovens acabariam rapidamente por se traduzir em resultados, dando origem à aplicação(app) CycleAI, desenvolvida por Codrin Bostan.
Recorrendo a algoritmos de inteligência artificial, a CycleAI pretende dar mais poder de decisão e segurança ao ciclista, tornando ainda o planeamento urbanístico mais eficaz e analítico. “Através do estudo da perceção de risco do ponto de vista do indivíduo, visamos potenciar o desenvolvimento de cidades seguras, em que as sequelas de acidentes com ciclistas e peões tendam para zero”, realça Luís Rita.
Volvidos apenas alguns meses do começo desta aventura, os dois empreendedores conquistariam o primeiro lugar na hackathon inaugural da Federação Europeia de Ciclistas (FEC), e mais recentemente do BET/AWS University Challenge. “Foi incrível. Era a primeira competição em que participávamos. Tínhamos plena convicção de que o nosso projeto poderia fazer a diferença na vida das pessoas e na forma como as cidades se desenvolvem; mas ver as nossas ideias partilhadas por um júri composto pelas principais referências europeias na área foi fantástico”, confessa o antigo aluno. “Vencer o hackathon funcionou como uma faísca a encorajar-nos nesta empreitada”, sublinha ainda.
Para construir a perceção de risco-variável de indivíduo para indivíduo, os criadores da CycleAI disponibilizaram no site um mapa onde qualquer pessoa pode assinalar aquelas que perceciona como zonas de risco, nacionais e internacionais. “É um crowdsourcing que articula um mapa mundial de ‘hotspots’ que contemple os pontos mais perigosos para os utilizadores de bicicleta”, explica Luís Rita. O ciclista pode indicar diretamente o ponto de acesso em causa ou escrever um endereço, adicionando uma descrição que justifique a sua classificação, e se assim o desejar, pode também sustentar esta sinalização com uma imagem do local. Entretanto, o mapa estará sempre disponível ao público, permitindo assim que a própria app acompanhe a constante mutação das cidades.
Neste momento, a dupla está já a desenvolver um segundo crowdsourcing diferente no seu propósito, uma vez que os dados recolhidos permitirão treinar o modelo de machine learning para que se possa interpretar o sentido da perceção de risco de qualquer imagem numa questão de milissegundos. “De entre duas imagens de Google Street View, pediremos ao utilizador que escolha aquela que lhe transmita mais segurança”, esclarece Luís Rita.
Em ambos os reptos lançados pela equipa do CycleAI é crucial o contributo do maior número de pessoas, uma vez que será a partir da mesma que poderá ser criada uma base de dados fidedigna, assim como a automatização do processo de classificação de imagens e, então, chegar rapidamente a uma “previsão do nível de segurança percecionada pelos ciclistas nas imagens”.
Para além dos incentivos é preciso mais segurança na mobilidade ciclável
A verdade é que apesar de serem cada vez mais os incentivos para o uso frequente da bicicleta, pedalar em muitas cidades, nomeadamente nas portuguesas, ainda não é tão seguro quanto se desejaria. O mesmo é revelado por um estudo recente da FEC que aponta Portugal como um dos países europeus com menos condições para pedalar, ocupando o 27.º lugar entre os 28 países avaliados como bike-friendly. Entre outros fatores, é referenciada a “elevada sinistralidade” que se verifica “apesar do investimento realizado em prevenção”.
Os dados recolhidos pela CycleAI poderão ser usados de muitas formas, mas o principal objetivo é dar aos ciclistas mais ferramentas para se manterem em segurança. “O objetivo é centralizar o tratamento de dados que empoderem o ciclista para a sua própria segurança. Assim, por conseguinte, não só o ciclista sai recompensado; mas sim todos aqueles que façam parte do ecossistema urbano, sejam peões, motociclistas, automobilistas”, frisa Luís Rita.
Lembrando que a mobilidade ativa se tornou num foco importante para municípios e governos europeus nos últimos anos, o antigo aluno do Técnico destaca que “é premente a adaptação das cidades para esse efeito, partindo da construção de datahubs que permitam, através das ferramentas necessárias para atingir os objetivos propostos, zelar pela segurança e bem-estar da sociedade em geral”.
O projeto está a alcançar “uma visibilidade e feedback soberbos, bem acima das nossas expectativas”, tal como nos conta Luís Rita. O antigo aluno está consciente – até porque foi alertado para tal – da relutância inicial das pessoas até que os projetos se tornem palpáveis. Ainda assim os dois empreendedores estão “confiantes de que, assim que estabelecermos acordos públicos e institucionais, seremos capazes de transmitir esse sentimento de concretização”.
Os primeiros dados recolhidos pela CycleAI deverão ser conhecidos já início de 2021, altura em que também deverá já estar pronto o protótipo da aplicação. No calendário de Luís Rita e Miguel Sampaio Peliteiro está também já agendada a participação na Velo-City 2021, a principal conferência mundial de mobilidade ciclável, para qual foram convidados. Claro não disseram que não ao desafio, bem pelo contrário vão fazê-lo a pedalar, fazendo de bicicleta a viagem entre Barcelona e Lisboa, enquanto demonstram o produto final. “Será algo espetacular, mesmo”, antecipa o antigo aluno do Técnico, com um entusiasmo que não deixa margem para dúvidas.
Para Luís Rita, este projeto é antes de tudo “a tal materialização de um trabalho que era meramente académico”. “Transpor o meu foco e as minhas ideias para a sua aplicação no mundo real é, sem dúvida, o caminho que espero percorrer”, afirma. Ainda que sem conseguir prever onde a CycleAI irá chegar, o alumnus partilha que “a nossa intenção é salvar e melhorar vidas, e é com esse objetivo que continuaremos a trabalhar”.