A “preocupação extrema com os alunos”, “os rasgos de pioneirismo”, a inspiração que “sempre” foi para os seus estudantes, e a “forte referência” que nunca deixará de ser na área da Inteligência Artificial. Foi desta forma, numa catadupa de elogios e admiração, que o professor João Pavão Martins foi descrito por cada uma das pessoas que subiu a palco na sua cerimónia de jubilação, na passada terça-feira, 22 de março. A sabedoria que pautou a sua carreira não ficou de fora da sua última aula subordinada ao tema “A Inteligência Artificial em Portugal”. Familiares, amigos, muitos colegas, filhos científicos e muitas gerações de alunos inspirados pelo professor João Pavão Martins fizeram questão de estar presentes para ouvir a última aula que antecede a jubilação obrigatória aos 70 anos.
O presidente do Técnico, professor Rogério Colaço, seria o primeiro a sublinhar o “cuidado extremo” com que o professor João Pavão Martins tratava os seus estudantes, definindo-o como um exemplo da “forma como devemos formar, ensinar, dar o exemplo através daquilo que fazemos”. O docente fez ainda questão de destacar “o relevante o papel do professor Pavão Martins na Transferência de Tecnologia numa altura em que há 30 anos isso não era uma das prioridades estratégicas daquilo que deveria ser a missão de um professor”. “E este pioneirismo que penso que todos nós reconhecemos naquilo que foi o trabalho do professor foi importante e transformador naquilo que o Técnico é hoje e no caminho que deverá seguir”, disse.
Ainda que o seu papel na mesa fosse como presidente do Departamento de Engenharia Informática (DEI), o professor Nuno Nunes não conseguiu despir o orgulho de antigo aluno na sua intervenção. “Para todos nós, gerações de engenheiros informáticos formados aqui no Técnico, o Pavão Martins é uma forte referência”, declarou. Destacando a excelência do homenageado, a entrega que sempre colocou no que fazia e os milhares de alunos que ensinou a programar, o professor Nuno Nunes vincou os “rasgos de pioneirismo” que carateriza a carreira do agora docente jubilado. “Quando ninguém falava em Inteligência Artificial (IA), o Pavão Martins já tinha criado a especialização nessa área, já tinha criado a LEIC [Licenciatura em Engenharia Informática e de Computadores] juntamente com outros fundadores, e já tinha criado uma empresa que fazia IA de altíssimo nível e que tinha clientes globais”, declarou, agradecendo em nome do DEI todo o trabalho e entrega.
O momento do elogio, típico nestas cerimónias, e que dificilmente poderia ser chamado de outra forma neste caso, ficaria a cargo do professor José Alves Marques, também docente do DEI. Percorrendo as várias etapas do percurso académico do homenageado, o professor José Alves Marques lembrou a excelência desde os tempos de estudante, frisando que foi “sempre um exemplo de pedagogia, uma pedagogia diferente, uma pedagogia própria com tempo”. “Como pedagogo acho que foi insubstituível e teve um papel enormíssimo do ponto de vista da formatação da LEIC”, complementou.
O professor João Pavão Martins não reprimiu a sua veia empreendedora quando esta aflorou, numa altura em que esta ousadia era muito pouco comum. “Não é demais realçar que na realidade quando ele se abalançou a isto, estas empresas de produto a partir de Portugal eram coisas extremamente raras. Hoje achamos que isto é natural, mas há 30 anos ou há 40 anos, pensar que a partir de Portugal se fazia uma empresa de produto na área da Inteligência Artificial e num setor muito fino do planeamento era qualquer coisa que certamente muito poucos acreditariam”, realçou o professor José Alves Marques.
Para último, mas não menos importante, dado o impacto que teve na vida da escola, ficou o enaltecimento da sua veia de reformador, na criação do curso e mais tarde do departamento. “Provavelmente sem o João a Inteligência Artificial não teria tido o papel e a estruturação que teve no curso há 35 anos”, defendeu.
Uma inspiração para alunos e colegas
O número de pessoas que quiseram proferir algumas palavras na cerimónia é por si só revelador da popularidade do professor João Pavão Martins.
A professora Ana Paiva, coordenadora atual da área de IA, seria uma das que fez questão de subir ao palco e ter oportunidade de homenagear o seu antecessor neste cargo. A admiração pelo professor João Pavão Martins começou quando “dava os meus primeiros passos na área de inteligência artificial” e não mais desapareceu. “A cadeira dada pelo João foi um marco e uma inspiração no meu percurso, como estudante e mais tarde como investigadora do Técnico e tenho a certeza que aconteceu o mesmo com muitos”, referiu, dando voz à gratidão que a invade por isso mesmo. Definindo-o como um visionário, elencando alguns dos seus feitos e a resiliência que o levou a ficar “num dos invernos da IA”, a docente do DEI não quis “deixar de referir que o professor foi o maior defensor da qualidade, da excelência e da humanidade”.
Ainda que ciente de que corria o risco de se repetir, o professor José Tribolet não quis deixar papel de homenagear o seu colega e cúmplice de muitas conquistas, testemunhando a sua “admiração pela forma como o João está na vida”. Elogiando o “comportamento exemplar” do colega para com todos os elementos da comunidade académica, o professor José Tribolet recorreu, como sempre lhe apraz, a uns pozinhos de humor para destacar a “forma serena, ponderada e respeitadora com que ele sempre lidou com toda a gente”. “É importante retirarmos disto tudo uma lição: quando um conjunto de homens e mulheres bons se juntam à volta de propósitos que têm o valor, que têm significado, os milagres acontecem”, vincou ainda, lembrando o trabalho feito pelo homenageado e por si próprio na construção da LEIC e do departamento e que hoje resulta na “força do Técnico nesta área, o contributo que tem dado para o país em muitos domínios”. “Esperemos que os muitos que tiveram o prazer de lidar com o João sigam o seu exemplo e façam mais iniciativas destas e obrigado João, por tudo”, concluiu.
A “Inteligência Artificial em Portugal” por um dos seus grandes obreiros
Inevitavelmente o tema da última aula do professor João Pavão Martins só poderia ser a “Inteligência Artificial em Portugal”, não pudesse mesmo tantas vezes a evolução da área e a carreira do docente confundirem-se de tanto que se tocam. Ainda que o momento represente o final de uma etapa a que chega sem “grande júbilo”, como confidenciou, o professor João Pavão Martins deixou uma promessa: “não se vão ver livres de mim porque ainda tenho projetos”. O seu currículo faz-nos crer que não se ficará pelas promessas.
Ao longo de mais de uma hora, o professor João Pavão Martins conduziu a audiência por uma retrospetiva histórica pela evolução da IA, além-fronteiras e cá dentro, partilhando o que foi sendo feito ao nível do ensino e investigação, e realizou uma breve avaliação da situação atual.
Ainda que consciente de que a afirmação poderia gerar controvérsia, o professor João Pavão Martins apontou o Técnico como o berço da IA em Portugal e o professor Gouvêa Portela como o grande impulsionador disso, lembrando o seu papel na criação do Centro de Estudos de Cibernética e o impacto na sua carreira. “O professor Portela agarrava em bons alunos, reunia-os na sua casa às quintas-feiras à noite depois de jantar, e preparava esses alunos para fazerem uma carreira de doutoramento. Ia dirigindo-os para várias áreas que eram importantes e eu fui um dos que fui apanhado”, recordou com um sorriso.
O estágio no Laboratório Nacional de Energia e Geologia, onde trabalhou em aplicações Prolog e começou a ter contacto com IA, seria um passo importantíssimo neste percurso, para si para os outros elementos do grupo que acabariam por construir carreiras de sucesso a nível nacional e internacional, muitos dos quais com um papel fulcral no crescimento da IA em Portugal. Seguiu-se o doutoramento e logo depois o regresso. “Voltei dos EUA em 1983 e fui o primeiro doutorado em IA vindo dos EUA”, contou. Depois de 18 meses na tropa a “bater cartas e circulares”, e da contratação como professor assistente convidado a tempo parcial, começava a carreira como docente do Técnico.
Com o relato de algumas peripécias pelo meio, o docente foi dando a conhecer os desenvolvimentos rápidos da área, com vários doutorados em IA a formarem-se em Portugal, o surgimento dos primeiros trabalhos e encontros da comunidade de investigadores que “começaram a reproduzir-se”.
“Em 1986 para mim foi um ano de clivagem: professor no Técnico, com o grupo de IA, estava na direção do centro de informática, a lutar pela criação da licenciatura em informática, e aparece o meu ‘eu empreendedor’”, recordou mais adiante, dedicando algum tempo da sua apresentação a dar a conhecer a SISCOG, empresa que fundou há 37 anos na área de IA com Ernesto Morgado.
Em paralelo com a IA, para onde acabaria por cativar muitos alunos, nutriu o interesse pelo ensino da programação que acabou por poder explorar na LEIC. E claro que a criação do curso não foi esquecida neste folhear de memórias. “Grandes mudanças precisam de grande coragem para as tomar”, afirmou a determinada altura. E esta não faltou aos criadores do curso no Técnico, ainda que como confidenciou o professor João Pavão Martins, “não tenha sido fácil”.
Enquanto explorava aquilo que tem sido feito a nível do ensino e investigação em IA em Portugal, acabou por dar a conhecer um dos projetos que mostra que não parou, nem o quer fazer. “Comecei a olhar para as páginas do Ciência Vitae, ORCID e DBLP e para cada pessoa comecei a ver onde a pessoa está, o que faz e o que fez de relevante”, explicou. Em resposta a um desafio que lhe foi lançado, decidiu escrever um livro sobre o assunto, cuja versão mais pequena gostaria de submeter à IST Press, como confidenciou. “Acho que seria um marco para todos nos lembrarmos do que era a IA em 2022”, disse. Para a versão mais extensa, com 650 páginas, também já tem planos: transformá-la num Wiki a disponibilizar na página da Associação Portuguesa para a Inteligência Artificial.
Ao terminar, mais uma ronda de agradecimentos, desta vez mais diretos: primeiro aos pais, depois à esposa e aos filhos “que me têm acompanhado nos bons e maus momentos e aos quais eu tenho roubado muito tempo devido à minha atividade profissional”, e ainda aos professores que lhe “moldaram” a carreira. Por último, mas não com menos entusiasmo, aos seus “alunos todos”. “Eles fizeram-me pensar, fizeram-me progredir e tiveram uma influência enorme na minha carreira”, colmatou.
A ovação prolongada e os olhares de admiração que preenchiam a plateia, fechavam da melhor maneira a cerimónia e a carreira de docente do professor João Pavão Martins.