Aquilo que já se previa poder vir a ser uma importante arma no combate à pandemia e que levaria ao surgimento do projeto COVIDETECT, é hoje em dia uma metodologia comprovada com muitos resultados: é mesmo possível através de uma simples análise de rotina às águas residuais prever com alguns dias de antecedência novos surtos de COVID-19. Os resultados do projeto, apresentados publicamente na passada quarta-feira, 26 de maio, demonstram ainda que é possível investigar a diversidade dos genomas do vírus SARS-CoV-2 que circulam numa comunidade através da análise de águas residuais, que poderá servir de apoio à vigilância clínica.
O Instituto Superior Técnico é uma das entidades envolvidas no projeto, coordenado pela AdP VALOR, lançado em abril de 2020 e financiado pelo FEDER, através do programa Compete 2020. O consórcio integra também outras empresas do Grupo AdP – Águas de Portugal e a Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa.
O COVIDETECT monitorizou as águas residuais de 20% da população portuguesa. Além de cinco Estações de Tratamento de Águas Residuais (ETAR), localizadas em Lisboa, Cascais, Vila Nova de Gaia e Guimarães, os investigadores monitorizaram a circulação do vírus nas redes de drenagem dos efluentes do Hospital Curry Cabral, em Lisboa, do Hospital Eduardo Santos Silva, em Vila Nova de Gaia, e do Hospital Senhora da Oliveira, em Guimarães.
A análise de um total de 760 amostras de águas residuais, entre 27 de abril e 2 de dezembro de 2020, permitiu confirmar que os dados obtidos para SARS-CoV-2 a partir das águas residuais não tratadas seguiam, de forma bastante ajustada, os novos casos diários reportados para as regiões em que se encontram as ETAR testadas neste estudo.
O consórcio coordenou ainda o estudo de sequenciação do genoma de SARS-CoV-2 de amostras selecionadas de águas residuais colhidas no período do estudo, em diferentes fases da epidemia COVID-19 em Portugal, tendo detetado mutações das variantes da Califórnia e da Nigéria, detetadas no final de outubro em Lisboa e no início de novembro em Serzedelo respetivamente.
Outro dos relevantes resultados do projeto é a conclusão de que o tratamento das águas será suficiente para eliminar o vírus, uma vez que apesar de se ter detetada a presença de material genético de SARS-CoV-2 em algumas das amostras de águas residuais tratadas, verificou-se não existir potencial para transmissibilidade ou impacto para o meio recetor.
“Era de extrema importância perceber se esta deteção representava riscos para o meio ambiente e para a saúde humana dentro do Ciclo urbano da água. A nossa equipa desenvolveu um método mais expedito que a utilização de linhas celulares -embora tenha, posteriormente, validado os resultados também com linhas celulares- para verificar a infecciosidade dos vírus detetados neste tipo de águas”, evidencia Ricardo Santos, investigador do Laboratório de Análises do Instituto Superior Técnico (LAIST) e um dos coordenadores da participação do Técnico no projeto.
O COVIDETECT tem conclusão prevista para agosto. Até lá as entidades irão centrar-se na criação de um sistema de alerta em tempo real para notificação das autoridades de saúde e ambiente sobre a reemergência do vírus, na disseminação dos resultados e dos modelos desenvolvidos para aplicação mais abrangente noutros sistemas. Será ainda disponibilizado um dashboard interativo com toda a informação decorrente do projeto.
A equipa do LAIST é corresponsável pelo scale-up da metodologia para as entidades gestoras de saneamento. “Compete-nos fazer uma transferência do conhecimento metodológico para as entidades gestoras de saneamento bem como a pesquisa de validação de novas metodologias, caso necessário, para implementação de um método de rotina nos laboratórios de autocontrolo para deteção da presença do vírus, onde e se aplicável”, frisa Ricardo Santos.
Método de deteção e quantificação do SARS-CoV-2 nas águas residuais desenvolvido pelo LAIST
Coube à equipa do LAIST, liderada pelo investigador Ricardo Santos e pela investigadora Sílvia Monteiro, o desenvolvimento e a posterior validação do método de análise e deteção do vírus nas águas residuais fulcral no sucesso do projeto, e também a monitorização de mais de 700 amostras de águas residuais, entre afluentes e efluentes de ETAR’s e efluentes hospitalares.
Além de poder ser aplicado a outros vírus, o modelo desenvolvido pode também ser usado na deteção de outros grupos taxonómicos incluindo bactérias – importante para a resistência a antibióticos – e protozoários. “Trata-se de um método bastante robusto, como demonstrado pelo exercício interlaboratorial que realizamos em parceria com o laboratório de referência europeu para a pesquisa de SARS-COV-2 em águas residuais e expresso no relatório da JRC”, refere a investigadora do LAIST.
“Neste estudo, amostras de 3 ETAR’s portuguesas foram enviadas para o KWR nos Países Baixos e analisadas em paralelo pela nossa equipa. Em duas das amostras tivemos resultados coincidentes com o laboratório da KWR. No entanto, para a terceira amostra -tratando-se de uma ETAR complicada dado que recebe um grande input de efluentes industriais – o laboratório da KWR não conseguiu detetar SARS-CoV-2 tendo obtido um valor de recuperação baixo, enquanto que a nossa metodologia permitiu essa deteção, demonstrando a fiabilidade da nossa metodologia e também uma melhor aproximação ao sistema de alerta precoce”, explica Sílvia Monteiro.
Tal como destaca Ricardo Santos “o mais recompensador é sem dúvida ver que esta ferramenta pode ser utilizada para ajudar as comunidades e a saúde no combate a esta e outras doenças/futuras pandemias, podendo ser um envolvimento europeu e mundial”. Apesar da experiência que detém nesta área, a equipa do LAIST enfrentou um desafio adicional neste projeto: “efetuar todo este trabalho numa altura de pandemia com todas as contingências e restrições que todos nós sentimos, incluindo trabalhar diariamente- incluindo feriados e fins de semana- durante os dois confinamentos”, refere o investigador do LAIST.
Consórcio colabora com a Comissão Europeia
Com o conhecimento produzido no âmbito do projeto permitiu a Portugal integrar o leque restrito de Países Europeus que contribuíram criticamente para a abordagem comum e para a recomendação comunitária.
O consórcio foi convidado pela Comissão Europeia para partilhar conhecimento e participar em alguns ensaios com outras cidades europeias, no âmbito da iniciativa pan-europeia relativa à utilização das águas residuais como sentinela da presença do SARS-CoV-2 na população, contribuindo para a redação final da Recomendação (EU) 2021/472 da Comissão relativa a uma abordagem comum para o estabelecimento de uma vigilância sistemática do SARS-CoV-2 e das suas variantes nas águas residuais da UE, em 17 de março de 2021.
Ministros destacam valor do projeto no combate à pandemia na sessão de apresentação dos resultados
Os resultados do COVIDETECT foram dados a conhecer pelo vice-presidente da AdP VALOR, Nuno Brôco, numa sessão que decorreu na Fábrica de Água de Alcântara, em Lisboa, e contou com a presença do ministro do Ambiente e da Ação Climática, João Matos Fernandes, da ministra da Saúde, Marta Temido, e de Inês dos Santos Costa, secretária de estado do Ambiente.
A Ministra da Saúde destacou que “um dos grandes ensinamentos desta pandemia é referente à necessidade de os sistemas científicos cooperarem e trabalharem em conjunto no sentido de dar a melhor resposta aos novos desafios”. A governante vincou o valor “incalculável” que reside na implementação do sistema de notificação em tempo real às autoridades de saúde que o projeto prevê. Marta Temido sublinharia ainda que é “numa perspetiva muito utilitária e prática que o Ministério da saúde encara o resultado deste trabalho, no sentido de aspirar a utilizá-lo para combater melhor esta pandemia, mas eventualmente aquilo que poderão ser novas emergências de vírus e novas ameaças à saúde”.
Também o Ministro do Ambiente e da Ação Climática na sua intervenção faria eco das mais-valias do projeto, salientando que “o braço dado com a ciência é fundamental”. Deste projeto “fica a certeza de que ninguém é menos responsável quando se trata de combater uma pandemia como esta, de que sabemos construir alertas para entregar às entidades da saúde quando aparecem variantes diferentes em vírus como este, e sobretudo quando pode haver surtos de maior ou menor dimensão e onde é que se localizam”, colmatou João Matos Fernandes.