E se através de testes a águas residuais, fosse possível antecipar a deteção da presença do novo coronavírus numa determinada localidade, perceber com maior exatidão a carga de infeção na comunidade ou ainda detetar precocemente a reemergência de SARS-CoV-2, o agente etiológico da COVID-19? Pois bem, é esse mesmo o propósito do COVIDETECT, um projeto lançado pelo Ministério do Ambiente e Ação Climática, e que junta as Águas de Portugal– líder do consórcio, o Instituto Superior Técnico, Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, Águas do Tejo Atlântico, Direção-Geral da Saúde (DGS), EPAL, Águas do Norte e a Simdouro. Ao grupo de investigadores do Instituto Superior Técnico caberá uma das tarefas mais importantes do projeto: a validação do método de deteção do vírus nas águas residuais.
Vários grupos de investigação em todo o mundo têm vindo a referir a análise das águas residuais- água usada que passa pelo sistema de drenagem até chegar a uma estação de tratamento – como uma ferramenta com muito valor no combate ao novo coronavírus, ajudando a estimar com mais precisão o número total de infeções, uma vez que a maioria das pessoas não chegará a ser testada. Sabendo das potencialidades que residem nesta análise, devido à bagagem que detêm na análise de vírus e águas, Ricardo Santos e Sílvia Monteiro, os investigadores do Laboratório de Análises do Instituto Superior Técnico (LAIST) envolvidos no COVIDETECT manifestaram a “intenção de pesquisar SARS-CoV-2 em águas residuais desde os primeiros relatos da presença deste vírus nas fezes de doentes infetados, pelo que já tínhamos em andamento processos para iniciar trabalho nesta área”, como recorda Ricardo Santos.
O projeto, considerado prioritário pelo Ministério do Ambiente e Ação Climática, acabou por ganhar uma estrutura ainda mais robusta com a criação deste consórcio, estando na sua retaguarda uma equipa multidisciplinar com elementos das várias entidades parceiras. Sob a responsabilidade dos investigadores do LAIST ficou o desenvolvimento e validação do método de deteção que permite analisar com o maior rigor as águas residuais, que como lembra Ricardo Santos “são uma matriz muito complicada de trabalhar com imensos interferentes”. “Após esta fase inicial de R&D [Research and Development], iremos proceder à monitorização das águas residuais para a presença e quantificação do vírus”, sublinha o investigador do Técnico. “O conhecimento e amostras geradas pelo LAIST, irá ser depois utilizado por outros parceiros do consórcio para a modelação do SARS-CoV-2”, acrescenta Sílvia Monteiro.
“O COVIDETECT é bastante interessante não só do ponto de vista científico, mas também de saúde pública”, sublinha Ricardo Santos. A fundamentação para este argumento vem logo de seguida e deixa os mais leigos menos confusos: “Por um lado, o que se sabe é que os vírus continuam a ser excretados nas fezes muito depois de serem negativos nas amostras respiratórias, podendo dar uma indicação mais clara do fim do surto”. “Por outro lado, como as pessoas assintomáticas ou com sintomas leves não são diagnosticadas, a análise das águas residuais poderá dar uma melhor aproximação da verdadeira extensão do surto epidémico” realça o investigador do LAIST. Sílvia Monteiro lembra ainda que “os vírus começam a aparecer nas fezes dias antes do desenvolvimento dos primeiros sintomas” e por isso uma monitorização rápida nas águas residuais poderá evidenciar a circulação do vírus na comunidade mais rapidamente. “Isto é importante na fase em que nos encontramos, dado que permitirá perceber se existirá o ressurgimento do SARS-CoV-2 em próximas vagas” afirma a investigadora do LAIST.
Prevê-se que o projeto que terá a duração de um ano tenha uma primeira fase de desenvolvimento e validação do método de cerca de um mês. Além da monitorização regular de SARS-CoV-2 em efluentes de ETARs [estações de tratamento de águas residuais] identificadas por entidades gestoras, e a reconstrução dos genomas de SARS-CoV-2 excretados e em circulação nas mesmas, prevê-se que o COVIDETECT permita a modelação epidemiológica e ecológica dos dados gerados, e posteriormente a transferência de conhecimento para as autoridades competentes, e contribuindo assim para o esforço nacional e mundial de conhecimento da extensão da pandemia. Os dados recolhidos poderão ainda apoiar as decisões dos stakeholders e melhorar a capacidade de preparação e resposta coordenada.
Além de aferir a circulação do vírus na população antes da sua disseminação na comunidade, este tipo de projeto pode também ajudar a clarificar a eficiência dos processos de tratamento de águas residuais. “É importante não contaminarmos as águas ambientais, rios, lagos, praias, etc., com esgoto, porque senão teríamos uma contaminação recorrente pelo que é necessário avaliar da eficiência dos tratamentos. E isso será feito, no âmbito deste projeto, para o SARS-CoV-2”, salienta Sílvia Monteiro.
As projeções atuais que apontam para a diminuição das taxas de incidência da COVID-19 nas próximas semanas, existindo por isso uma estreita janela de oportunidade para se desenvolver e implementar um sistema de alerta precoce baseado na deteção de genoma viral nas águas residuais e por isso mesmo a equipa terá que aproveitar estes tempos “em que o número de casos continua a subir, ainda que não de forma exponencial para termos o maior número de dados que possam ser utilizados no futuro”, realça Ricardo Santos. “O timing do projeto é, portanto, crucial”, vinca ainda.
As medidas de prevenção e controlo da infeção adotadas pelos diversos países têm tido um papel fulcral na redução do número de infetados, porém, e tal como muitos especialistas explicam, à medida que as medidas decretadas pelo estado de emergência de cada país comecem a ser levantadas é normal que haja um aumento, ligeiro ou não, dos números. Assim, a vigilância rotineira de águas residuais pode ser usada como uma ferramenta importante de alerta não invasiva para as comunidades detetarem novas infeções. Já quando, e se existir, um surto na época de inverno o COVIDETECT poderá ajudar a que sejam identificados casos, antes mesmo de serem detetados doentes pelas entidades de saúde. “As águas residuais podem servir como um watch dog, um early warning system, da circulação deste vírus e de outros, mesmo antes da saúde ter os primeiros casos confirmados que dependem do desenvolvimento de sintomas que muitas vezes ocorrem tardiamente ou que podem até nem ocorrer antes que o vírus já se encontre completamente instalado e em circulação na população”, reiteram os investigadores do LAIST.