Ciência e Tecnologia

Nobel da Medicina 2024 – um comentário do Técnico

Jorge Leitão, professor do Técnico, explica a importância da descoberta do microRNA e o seu papel na regulação da expressão de genes, tema destacado pelo Prémio Nobel de Fisiologia ou Medicina 2024 atribuído pelo Instituto Karolinska.

O Prémio Nobel da Medicina de 2024 foi atribuído a Victor Ambros e Gary Ruvkun pela descoberta do microRNA, uma classe de moléculas de RNA (sigla inglesa para ácido ribonucleico) com um papel crucial na regulação de genes (o RNA é como que um passo intermédio entre a informação contida no DNA de uma célula e as proteínas que esta é capaz de produzir para o bom funcionamento do organismo).

No Instituto Superior Técnico, estão atualmente em curso vários projetos de investigação financiados na área do RNA. Um dos projetos tem como objetivos a identificação e caracterização das funções biológicas de RNAs não codificantes de um grupo de bactérias causadoras de infeções respiratórias em doentes com fibrose quística e o uso desse conhecimento para estabelecer novas abordagens terapêuticas. Outros exemplos de projetos do Técnico focados no RNA visam a otimização de técnicas de produção e purificação de RNA mensageiro para uso em vacinas, ou o desenvolvimento de novas moléculas de RNA com atividade fungicida.

Jorge Leitão, professor do Instituto Superior Técnico e investigador no Instituto de Bioengenharia e Biociências (iBB), esclarece algumas perguntas em torno do trabalho premiado este ano pelo Instituto Karolinska.

O que é o microRNA e em que mecanismos celulares está envolvido?

A informação genética de um organismo está contida no seu DNA. Para que essa informação seja traduzida, tem de ocorrer um processo a que chamamos transcrição, que é passar do código armazenado no DNA para moléculas como o RNA mensageiro (mRNA), que irá depois ser traduzido em proteínas. Esse processo de transcrição dá origem a RNAs mensageiros e também a moléculas de RNA que não codificam proteínas e que, durante muito tempo, não se sabia para que serviam.

Sabe-se atualmente que os microRNAs pertencem a essa classe de RNAs que são transcritos a partir do DNA e que não dão origem a proteínas, mas têm um papel fundamental na regulação da expressão génica. Numa célula normal, nem todos os genes são traduzidos ao mesmo tempo e as alterações que ocorrem no ambiente fazem com que determinadas proteínas que eram essenciais passem a não fazer falta. Os microRNAs constituem uma forma rápida de regular a expressão génica face a alterações sentidas pelos organismos, permitindo a estes adaptar a sua maquinaria celular de forma rápida a novas condições.

O microRNA e o RNA mensageiro (mRNA) são coisas diferentes, portanto. Como interagem?

Os microRNAs são capazes de interagir com moléculas de RNA mensageiro, ligando-se a este nas sequências que apresentam complementaridade, num processo que envolve complexos de proteínas que auxiliam nessa ligação. Quando ocorre a ligação, o RNA mensageiro é inativado, fazendo com que não possa ser traduzido em novas proteínas. Daí dizer-se que os microRNAs exercem o seu papel regulador da expressão génica ao nível pós-transcricional [ou seja, após o processo de transcrição do DNA]. Os microRNAs exercem assim um papel fundamental na fisiologia das células. A sua importância mais prática resulta de terem sido descobertos microRNAs associados ao desenvolvimento de várias doenças em humanos como é o caso do cancro e algumas doenças degenerativas. O conhecimento dos mecanismos de atuação dos microRNAs está a ser explorado para desenhar novas moléculas e estratégias para combater estas doenças.

Que avanços para a ciência resultaram do trabalho de Ambros e Ruvkun? Que benefícios poderão ainda trazer no futuro da medicina?

O conhecimento dos microRNAs veio revolucionar o nosso conhecimento sobre os mecanismos de regulação da expressão génica. Até então pensava-se que a expressão de um gene dependia apenas da sua transcrição em mRNA, que iria dar posteriormente dar origem a uma proteína. Ora a descoberta dos microRNAs permitiu perceber que, para além disso, os próprios mRNAs estão sujeitos à ação dos microRNAs, permitindo às células um ajuste rápido e muito fino dos níveis de determinadas proteínas, sempre numa lógica de economia de recursos da célula.

Os trabalhos de Ambros e Ruvkun foram ainda pioneiros na descoberta de que este mecanismo de regulação é mais geral, estendendo-se a praticamente todos os organismos vivos, atualmente conhecido como ‘RNA de interferência’. O que é absolutamente fascinante nisto tudo é que determinados microRNAs têm sido associados ao desenvolvimento de determinadas doenças em humanos como é o caso do cancro e outras, abrindo assim caminho para o desenvolvimento de novas terapias para combater estas doenças.

Prevê que a atribuição deste prémio possa vir a encorajar mais investigação em torno do microRNA?

Os trabalhos premiados agora remontam aos anos 2000 e desde então têm sido feitos avanços enormes neste campo. Sabemos hoje que os microRNAs constituem uma classe especial de RNAs não codificantes que existem em organismos do tipo eucarionte (isto é, existentes em animais, plantas e outros organismos). Os desenvolvimentos neste campo de investigação têm sido suportados com financiamentos avultados por parte das grandes farmacêuticas. São conhecidos atualmente mais de mil microRNAs em humanos e há uma grande esperança de brevemente podermos usar este conhecimento na área da saúde humana. 

Mesmo em procariontes, como é o caso das bactérias, são conhecidos mecanismos de regulação da expressão génica baseados em RNAs não codificantes (que não são microRNAs, mas cujo mecanismo básico de atuação é semelhante). O conhecimento dos RNAs não codificantes em bactérias poderá abrir novos caminhos para combater infeções, sobretudo as causadas por bactérias resistentes a múltiplos antibióticos que constituem um problema cada vez maior à escala global.

Numa nota final, gostaria de refletir sobre a questão muito atual do financiamento em investigação aplicada em detrimento da investigação dita básica ou fundamental. Em dois anos consecutivos, foram premiados dois trabalhos fundamentais na área da medicina – este ano, a descoberta dos microRNAs e, em 2023, os trabalhos de Katalin Karikó e Drew Weissman sobre modificações nas bases do RNA mensageiro (que permitiram o desenvolvimento das vacinas de mRNA para o combate à pandemia da COVID-19). Estes são dois exemplos em como o conhecimento fundamental é absolutamente central para encontrar soluções inovadoras face a problemas completamente novos e que podem ser globais, tal como o foi a pandemia dos anos recentes.

O docente e investigador do Técnico comentou também a atribuição deste prémio nos órgãos de comunicação social: