Ciência e Tecnologia

O dispositivo que dá voz à atividade cerebral

Um antigo aluno do Técnico integra o grupo cientistas da Universidade da Califórnia que desenvolveu este estudo cujos resultados estão a impressionar o mundo.

O dispositivo criado por um grupo de cientistas da Universidade da Califórnia, em São Francisco, Estados Unidos da América (EUA) parece retirado de um filme de ficção científica -tamanhos são os limites que rompe e os conhecimentos que congrega-, mas não podia ser mais real e animador. O descodificador capaz de traduzir a atividade cerebral e de a transformar em fala é sem dúvida uma das grandes descobertas do ano, assumindo-se como um passo gigantesco para ajudar indivíduos que perderam a voz. Gopala Anumanchipalli, um dos investigadores envolvidos neste assombroso estudo passou pelo Técnico enquanto aluno do programa de doutoramento “Language Technologies” que junta a escola e a Carnegie Mellon University (CMU), e ajudou-nos a perceber melhor o alcance desta promissora investigação.

“Muitos problemas neurológicos, tais como Esclerose Lateral Amiotrófica (ELA), acidentes vasculares cerebrais ou outras formas de paralisia, prejudicam a capacidade de falar de uma pessoa. Os dispositivos auxiliares atuais, baseados em monitorização ocular ou contrações musculares, são lentos e tediosos de usar e resultam em taxas de comunicação muito baixas, como 10 palavras por minuto, na melhor das hipóteses”, começa por explicar o antigo aluno do Técnico que fez o doutoramento. Ora este número é muito inferior às mais de 150 palavras por minuto que comunicamos normalmente e foi essa mesma discrepância que levou este grupo de investigação a pensar sobre a possibilidade de ler diretamente o cérebro para restaurar a comunicação oral natural destes pacientes.

O novo dispositivo, testado por enquanto apenas em pessoas com capacidade de fala, assume-se como uma solução eficaz para todos os pacientes que perderam a fala. “Os participantes deste estudo foram pacientes neurocirúrgicos nos quais foram colocados cirurgicamente elétrodos na superfície do cérebro abaixo do crânio, como parte de um tratamento clínico para a epilepsia. Durante o internamento, eles ofereceram-se para participar na nossa investigação, que envolvia dizer frases de forma fluente”, explica o alumnus do Técnico. “Estes participantes falavam normalmente, mas demonstraram que esta tecnologia pode um dia ser implantada em alguém que esteja encarcerado ou paralisado”, realça de seguida. O estudo foi publicado na revista Nature no passado mês de abril.

Assim, o mecanismo criado desdobra-se em dois estágios- ambos fundamentais para o seu sucesso: no primeiro, um elétrodo é implantado no cérebro para captar os sinais elétricos que controlam os movimentos dos lábios, língua, caixa de voz e mandíbula. Em seguida, um programa lê as informações recolhidas para simular a movimentação que forma os sons das palavras na boca e na garganta e que são depois convertidos em acústica de fala audível. “No fundo, estamos a criar um aparelho fonador virtual que pode ser conduzido pela atividade neuronal de forma a gerar fala”, explica Gopala Anumanchipalli.

Embora o objetivo seja implantar este dispositivo em pessoas com problemas com a fala, o mesmo ainda não poderia ser feito sem este passo e a prova de conceito e princípio que demonstram neste estudo. Ainda assim, e ainda no âmbito deste processo – para simular o problema de uma pessoa paralisada- a equipa contou com um participante que proferiu algumas frases em silêncio (ou seja, movendo o trato vocal sem produzir nenhum som) e o resultado foi comovente, como partilha o antigo aluno do Técnico: “ficámos emocionados ao ver que podemos produzir a fala, mesmo nesse caso”.  “Prevemos que o nosso descodificador possa ser implementado para restaurar a comunicação em pessoas sem a capacidade de falar”, adiciona. Para tal apenas será necessário que “a função nos centros de fala do cérebro ainda esteja intacta”, como refere o investigador.

“Este trabalho começou há mais de 5 anos. Melhorar a qualidade de vida destes pacientes foi o que nos motivou a prosseguir com esta investigação. Não sabíamos o que era possível fazer com as tecnologias existentes, nem os limites da neurociência subjacente à produção da fala humana”, relembra o antigo aluno do Técnico.  “Ficamos felizes por este trabalho fornecer a prova do princípio de que é possível criar um discurso, apenas a partir da atividade neuronal”, vinca de seguida, apontando este avanço como “um ponto de partida para a criação de uma interface cérebro-computador, que pode potencialmente restaurar a capacidade de comunicação a alguém que perdeu a função da fala devido a problemas neurológicos”. “Esta investigação é apenas um começo (…), mas o potencial para as suas aplicações pode ser enorme”, elucida o investigador da Universidade da Califórnia.

Ainda que a descoberta seja por si só fenomenal, o grupo de investigadores quer continuar a aprimorar o sistema, testando efetivamente a esperança que o mesmo representa para pessoas que perderam a fala.  Para isso o grupo está a trabalhar “num ensaio clínico para testar o quão bem esta tecnologia pode funcionar na nossa população-alvo de pacientes que perderam a função da fala devido a problemas neurológicos”, anuncia Gopala Anumanchipalli.

Para o investigador da Universidade da Califórnia em todo este processo revelou-se fundamental a formação adquirida nos seus anos de doutoramento nomeadamente “para a compreensão do sinal da fala”, proporcionando-lhe “excelentes capacidades de engenharia que possibilitaram levar a cabo este trabalho”. “A minha investigação para fins de doutoramento consistiu em modelar aspetos prosódicos para melhorar a fala gerada por computador, e interessei-me muito em entender as bases fisiológicas da própria fala humana”, aprofunda, de seguida, Gopala Anumanchipalli. Por isso mesmo e enquanto paragem dessa mesma formação, o investigador não esquece o tempo que passou no Técnico e não hesita em afirmar que deve muito “ao INESC-ID/Técnico e à Carnegie Mellon pela excelente formação que me proporcionaram”.