A história de vida de Tânia Trindade é uma ode à esperança, ao sentido de solidariedade, à capacidade de ir mais longe pelos outros, é o exemplo da importância de nos deixarmos ficar onde temos mais impacto. A antiga aluna do Técnico podia ser uma pianista internacionalmente reconhecida, podia estar a dar cartas no mundo da aviação ou da gestão, mas quis mais, sobretudo dar mais. Fugiu das rotinas, das certezas absolutas, e rumou ao país onde nasceu, mas que nunca teve oportunidade de conhecer bem. Ao aterrar na República Democrática do Congo sentiu-se em casa, identificou-se com o clima, deixou-se ir pela música, identificou-se com os sorrisos e os cheiros, mas não se pôde conformar com a tristeza das crianças órfãs e subnutridas com que se cruzou. Fez da música a sua ponte até elas, persistiu, ensinou-os a cantar, a tocar, mas sobretudo a sorrir. O sentido e a generosidade por detrás do projeto Bana Congo- nome do grupo musical criado pela alumna– reflete-se nas músicas e deixa poucos indiferentes, que o diga Joss Stone que gravou um vídeo com o grupo no ano passado.
Tânia Trindade sempre gostou de aviões. Sonhou até comandá-los tornando-se piloto, mas a mãe trouxe-a à terra e quis que continuasse a estudar. Sem querer contrariar a progenitora, mas recusando-se a largar os seus sonhos- e aproveitando o facto de ser boa aluna- decidiu fazer o curso de Engenharia Aeroespacial. No Técnico, além de tudo o que aprendeu, conheceu o marido, Pedro, o parceiro de todas as aventuras, nomeadamente de uma que tem mudado outras vidas. Curiosamente, ou não, tinham em comum o gosto pela música, a mesma com que hoje fazem a diferença. “Para além de termos muitos gostos em comum e personalidades muito semelhantes, a nossa vida é acompanhada de música em todos os sentidos”, destaca.
Depois de acabar o curso no Técnico, estagiou na Portugália/TAP na secção de manutenção dos aviões, onde aprendeu muito. Seguir-se-ia a passagem pela Tekever onde exerceu a função de Business Developpement e Gestão de Projetos, na área de Smart Grids e UAVs. “Aprendi muito e apercebi-me que o Técnico tinha sido uma ferramenta fundamental na minha formação profissional: permitiu-me não ter receio de nenhum desafio. Em ambos os sítios onde trabalhei, apercebi-me logo que o que mais gostava era de gerir e liderar”, afirma a alumna. Por outro lado, rapidamente perceberia o pouco que gostava de “estar em frente a um computador todo o dia, ter horários fixos para entrar ou sair ou ir almoçar, e ter de me submeter a muitas regras”. As filas de trânsito da A5 ou da 2.ª circular, dia após dia, obrigavam-na a uma análise de vida que a inquietava, levando-a a ter a certeza que precisava de mais. “Saía de casa quando o sol nascia e chegava a casa já de noite. Sentia-me vazia, pois passava uma grande parte do tempo em frente a um ecrã de computador com os auriculares nos ouvidos, em vez de comunicar, intervir positivamente na vida de pessoas que realmente precisavam de mim e que ali, era mais uma”, relata Tânia Trindade. “Sou muito sonhadora e sentia um vazio que me dizia que tinha de ter coragem de arriscar e voar para outras latitudes”, confessa. E voou.
Antes de tudo, o caminho da antiga aluna do Técnico é uma contradição feliz daquele lugar-comum que nos diz “que nunca devemos voltar ao sítio onde fomos felizes”. Tânia Trindade nasceu na Repbúlica Democrática do Congo de onde se viu obrigada a sair aos cinco anos devido à guerra. “Os meus pais foram obrigados a levar-me para Portugal, com a minha irmã mais velha. Ficámos as duas a viver com os meus avós paternos. Fomos ficando por Portugal, pois o ensino no Congo não estava estável, tendo em conta toda a volubilidade política que o país estava a viver e os meus pais foram sempre adiando o nosso regresso ao Congo”, recorda a antiga aluna do Técnico. As férias da escola eram sempre um motivo mais que plausível para regressar, e a jovem não esquece o quanto isso a entusiasmava. “Fiquei sempre muito ligada com aquele país. Tudo de lá era tão especial para mim: o cheiro a humidade quando saía do avião, a confusão das ruas, a vegetação, o sorriso dos congoleses, a liberdade”, partilha. Em 2012, as boas recordações e sobretudo a vontade de mudar deixaram de adiar o regresso.
“A música será sempre parte integrante dos meus sonhos”
A música chegou muito cedo à vida de Tânia Trindade, e nunca mais sairia. “Comecei a estudar música aos 5 anos com uma professora muito conceituada e exigente. Aos 9 anos fiz exame de admissão para o Conservatório Nacional de Lisboa mas também para o Instituto Gregoriano de Lisboa. Fui aceite em ambas as instituições”, relembra. Ainda se lembra de como se sentiu “muito pequenina” quando abriu a porta da sala do Conservatório onde seria o exame de admissão. A prestação e o seu“ouvido absoluto”- uma condição que poucos têm no mundo- cativou desde logo o júri da audição. “No entanto, a minha avó achou que o Conservatório era demasiado grande e impessoal, e preferiu o Instituto Gregoriano de Lisboa que era uma casinha bem mais pequena e familiar”. A música nunca mais a largou e até ponderou optar por uma carreira musical, mas rapidamente percebeu que “não iria ser feliz só na carreira de música clássica profissional”.
Hoje em dia, Tânia Trindade percebe melhor do que nunca a importância deste caminho, o que ele lhe permite fazer, e a forma como esta formação musical se reflete na pessoa que é. “A música é uma linguagem universal que nos permite comunicar com todo o mundo de uma forma tão simples. Ensina-nos a aceitar e respeitar todo o mundo, sem críticas nem julgamentos”, refere. “A música será sempre parte integrante dos meus sonhos”, acrescenta.
“Não consegui ficar indiferente e sobretudo, não consegui limitar-me às funções que me tinham sido dadas”
Assim que aterrou na República Democrática de Congo a sensação de “casa” foi imediata para Tânia Trindade. Consigo levou o seu companheiro de aventuras, o marido. “Embora tudo fosse novo para o Pedro, com a sua capacidade de adaptação, rapidamente compreendeu que ali a componente interpessoal ganhava uma expressão muito mais significativa do que qualquer teorema matemático”, afirma a alumna do Técnico. “Nunca me arrependi de ter impulsionado esta mudança, pois tudo o que aprendemos aqui foi tão enriquecedor tanto a nível pessoal como profissional, que sei que não haveria melhor escola da vida”, frisa de seguida.
Os dois antigos alunos do Técnico tinham sido convidados para trabalhar numa empresa de madeira, Pedro para gerir um departamento da empresa e Tânia ficou responsável pelos estudos e gestão sustentável da empresa, nomeadamente de um hospital pertencente à empresa, numa aldeia a 600km de Kinshasa- capital do país. “Para além disso, ocupava-me da contabilidade, gestão de recursos humanos, gestão de projetos com organismos internacionais como a WWF, GIZ, Caritas, UNICEF, etc.”, relembra.
Seria através da gestão do hospital que Tânia Trindade teria contacto com várias crianças e jovens que sofriam de subnutrição severa. “Um dos pavilhões do hospital é um centro de nutrição instaurado pela AMI em 2007, que acolhe diariamente e gratuitamente 30 a 40 crianças e jovens, que chegam desamparados e à beira da morte”, conta. “Essas crianças tinham um olhar de desespero, tristeza, medo, solidão… como nunca tinha antes visto. A subnutrição causa atrasos a nível cognitivo, motor e de concentração. Não consegui ficar indiferente e sobretudo, não consegui limitar-me às funções que me tinham sido dadas”, relata ainda a antiga aluna do Técnico.
Durante alguns meses, a antiga aluna do Técnico limitou-se a observar, tentando compreender de que modo poderia tentar melhorar a vida daquelas crianças e jovens. “Apercebi-me que a comunicação com eles não seria fácil porque não falava o dialeto daquela zona (lingala) e a cultura e crenças daquela região faziam com que se gerasse uma grande distancia entre eles e eu. Todos os dias dizia ao Pedro que tinha de conseguir fazer aqueles miúdos sorrirem de novo, e lembrei-me da música”, recorda. Em setembro de 2012 decidiu levar a sua guitarra para o hospital e começar a cantar umas músicas simples de Natal. Ninguém a quis acompanhar nem sequer ouvir. “Faziam-me sentir que não era bem-vinda e que estava a invadir o espaço e a tristeza deles. Senti-me acanhada e afastei-me. Limitei-me às minhas funções de gestora do hospital”, partilha.
Uma colega do centro de nutrição alertou-a, mais tarde, para o impacto que aquela “desistência” poderia ter na vida daquelas crianças, e de como poderia de facto fazer a diferença. Tânia Trindade repensou a sua estratégia, e regressou à batalha. Aos poucos, e com a colega como aliada, conseguiu chegar até a algumas crianças. “Fizemos uma festa de Natal muito tímida em 2012, em 2013 já conseguiam dançar e cantar ao mesmo tempo. O número de crianças foi aumentando, em 2014 melhor ainda e o projeto não parou de crescer”, conta. Dia após dia, a jovem começou a perceber o real impacto do que fazia, e que ia muito para além das melodias que conseguia alinhar. “Comecei a reparar que quando saía do hospital tinha muitas crianças que ouviam os ensaios lá de fora e me pediam para também entrarem no grupo. Estas crianças que eram ignoradas, gozadas e consideradas “feiticeiras” passaram a ser os ídolos de todas as crianças de Nioki [nome da aldeia]”, partilha.
Sempre apoiada pelo marido, a antiga aluna decidiria construir uma escola de música fora do hospital, gratuita e aberta a todas as crianças, mas dando sempre prioridade aos que iam saindo curados do centro de nutrição ou outras crianças problemáticas. “Tivemos de limitar o acesso, claro, pois não temos apoios para aumentar muito mais a estrutura. Para além das aulas de coro, todas as crianças aprendem solfejo e um instrumento: piano ou guitarra”, relata.
“Foi muito bom ouvir o reconhecimento de todo este trabalho, sobretudo vindo de quem vem”
Uma grande parte dos miúdos que começaram em 2012 no Bana Congo- nome do projeto que no dialeto local significa Crianças do Congo- continuam assíduos nas aulas de música. “Não faltam a nenhum ensaio e o facto de terem solfejo a acompanhar, fá-los evoluir muito musicalmente. Esses mais antigos são uma base importante para os mais novos ou recentes do projeto e conseguem já ter uma performance incrível em palco”, realça Tânia Trindade. Em 2016, o grupo gravou um CD com músicas originais compostas por eles e uns clips “na tentativa de fazer publicidade ao grupo”, como partilha a alumna. “Em 2018, criei uma página Facebook pois sentia que este projeto tinha crescido tanto, era tão especial, pelo menos para mim, que não podia ser só conhecido em Nioki”, conta ainda.
Seria mesmo através desta rede social que algum tempo depois, a mentora do Bana Congo receberia uma mensagem do manager da Joss Stone a pedir mais informações sobre o projeto. “Queriam muito atuar com eles, em Kinshasa, em Maio 2019, data da vinda dela aqui no âmbito da volta ao mundo que estava a fazer [JSWT – Joss Stone World Tour]”, lembra a antiga aluna do Técnico. “Eu não queria acreditar e foi um misto de emoções em que só me apetecia gritar ao mundo o que se estava a passar”, partilha ainda.
Tânia Trindade teria oportunidade de não só conhecer um ídolo de adolescente, mas também de proporcionar esta oportunidade única às suas crianças. “Tivemos a oportunidade de partilhar muitos momentos com ela dos quais o mais emotivo foi o laço genuíno que se criou entre a Joss Stone, o projeto, as crianças, e nós como parte integrante de toda esta simbiose”, conta. De todos os momentos únicos que recorda, aquele que considera o mais marcante foi o dia da gravação do videoclipe dos Bana Congo com ela. “Como ela e o seu staff, afirmaram, dos cento e noventa e seis países percorridos até então, no âmbito da sua World Tour, a performance, originalidade e talento daquelas crianças superaram tudo o que tinham visto e sentido até então. Acrescentou ainda que aqueles miúdos terão de ir um dia a Inglaterra para encher um festival de música”, lembra Tânia Trindade.” Foi muito bom ouvir o reconhecimento de todo este trabalho, sobretudo vindo de quem vem”, aponta a antiga aluna.
“A música deu-lhes a capacidade de memorização, coordenação, concentração e sobretudo esperança”
A confiança, a alegria, a certeza de que é possível contornar a dor e começar a sonhar estão nas letras, nos vídeos dos Bana Congo, e estas inquantificáveis conquistas já ninguém tira a Tânia Trindade. “Estas crianças, antes de entrarem neste projeto, eram crianças rejeitadas, descredibilizadas e gozadas por terem sofrido de subnutrição. Passaram a ser respeitadas e admiradas por todos. Tornaram-se um modelo de inspiração para todas as outras crianças que chegam doentes ao centro de nutrição”, refere. “Isto deu-lhes autoconfiança e brio para serem bons alunos na escola. O projeto Bana Congo toma a cargo os estudos de todas estas crianças. A música deu-lhes a capacidade de memorização, coordenação, concentração e sobretudo esperança”, aponta ainda a alumna.
Assumindo-se uma mulher realizada, que se sente capaz de fazer a diferença todos os dias, a antiga aluna partilha os sonhos que não param de surgir, não fosse ela uma sonhadora nata: “Gostava muito que o futuro passasse pela internacionalização do documentário que o Pedro e eu produzimos, o qual irá ilustrar toda a história destas crianças que decidiram acreditar que era possível viver. Deste modo, através de apoios, criar-se-iam oportunidades para a expansão do projeto a outras províncias aqui do Congo e eventualmente países”, explica. “Acredito que sempre que fazemos algo de que gostamos, com qualidade e empenho, conciliando a isso um altruísmo sem que se esteja à espera de receber algo em troca, uma espécie de ‘estrela cintilante’ poderá conduzir-nos a um caminho cheio de boas surpresas”, frisa ainda.
Tânia Trindade é o exemplo puro de como para ajudar só precisamos de dar um pouco de nós, e esta é a mensagem que a própria quer que perdure. “Não interessa onde estamos, nem com quem estamos. Independentemente da cor, religião, cultura, há sempre maneira de contribuirmos para um mundo melhor e através da música compreende-se tão bem que somos todos iguais”, declara. “Se todos dispensassem um minuto do dia para pensar numa pessoa que precisa mais do que nós, e agisse, por mínimo que seja o gesto, viveríamos num mundo muito mais justo”, colmata.