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Nobel da Paz 2020: O antigo aluno do Técnico que luta todos os dias para erradicar a fome

Pedro Matos é coordenador de Emergência do Programa Alimentar Mundial e um dos colaboradores que contribui para o trabalho esplêndido desta organização distinguida com o Prémio Nobel da Paz.

“A fome é uma das armas mais antigas de conflito no mundo”, dizia Berit Reiss-Andersen, presidente do Comité Nobel Norueguês ao anunciar que o Prémio Nobel da Paz de 2020 seria entregue ao Programa Alimentar Mundial (PAM ou WFD, na sigla em inglês) da Organização das Nações Unidas (ONU). O Nobel reconhece o papel de solidariedade internacional desta organização humanitária, considerado “mais necessário do que sempre”. “Com o prémio deste ano, pretende-se que os olhos do mundo se voltem para os milhões de pessoas que sofrem ou enfrentam a ameaça da fome”, declarou Berit Reiss-Andersen.

Numa mensagem de agradecimento divulgada através da rede social Twitter, a organização galardoada salientou que este prémio “é um reconhecimento do trabalho dos colaboradores do Programa Alimentar Mundial, que arriscam a vida todos os dias para levar alimentos e dar assistência a mais de 100 milhões de crianças, mulheres e homens que passam fome em todo o mundo”, sublinhou a organização. Por entre estes humanitários há dois  antigos alunos do Técnico, Pedro Matos e Pedro Valentim. Pedro Matos é atualmente coordenador de Emergência do Programa Alimentar Mundial e conta-nos um pouco da sua experiência no universo da ajuda humanitária.

Nobel da Paz que lembra a importância da cooperação multilateral

A lista de candidatos da edição de 2020 do Nobel da Paz tinha 211 pessoas e 107 organizações. A Organização Mundial de Saúde (OMS) e Greta Thunberg eram apontados por muitos como os prováveis vencedores. Também Pedro Matos  apostava nestes como sérios candidatos a arrecadar o galardão e,por isso, confessa a surpresa e a emoção que a notícia lhe provocou.  “Nós alimentamos 100 milhões de pessoas todos os dias, somos muito grandes, mas a maior parte das pessoas não tem noção do trabalho que desenvolvemos e muitas nem têm noção de que existimos”, refere. “Por exemplo, montámos toda a logística para todas as organizações humanitárias de resposta à covid-19 quando os aviões ficaram em terra, formamos quase uma companhia aérea paralela para levar humanitários e equipamento de proteção médica para o mundo inteiro”, explica o alumnus.

Pedro Matos sabe que a fome, ou a comida que a sacia, costuma atrair holofotes, e este Prémio Nobel certamente reforçará esse mediatismo. O antigo aluno preferia que se olhasse para as causas que conduzem à insuficiência alimentar de milhões de pessoas em todo o mundo. “Gostávamos muito mais que o mundo pusesse mais foco nas razões que levam as pessoas ao conflito e à fome. Problemas como as alterações climáticas que levam as pessoas a serem empurradas para as migrações, a criminalidade, o extremismo ou para as guerras interétnicas”, sublinha. “Queremos marcar a agenda com o alerta para essas causas e este Prémio Nobel dá-nos essa possibilidade”, assinala o alumnus do Técnico.

Além disto, Pedro Matos espera que este galardão venha também contribuir para o conhecimento daquilo “que o PAM faz, como funciona, e como isso encaixa na estrutura maior das Nações Unidas”. Com isto, o coordenador de Emergência do PAM não almeja que coloquem a organização num pedestal, “mas sim que se perceba que isto é algo que é feito pelo mundo fora, mas que também é uma necessidade que existe junto de nós”.  “Gostava que essa melhor apreciação e consciencialização dos cidadãos influenciasse os nossos governos europeus, que ainda investem relativamente pouco a serem mais solidários internacionalmente com outros países menos favorecidos”, frisa, de seguida. O antigo aluno do Técnico espera ainda que o prémio e sobretudo a mensagem que lhe está implícita sejam orientadores de uma “visão mais pluralista,  com um presente e um futuro com mais decisões e ações de cooperação multilateral”.

Segundo os dados da ONU, há 690 milhões de pessoas (cerca de 8,9% da população mundial) em situação de fome. Devido ao impacto económico da crise provocada pelo vírus SARS-CoV-2, a organização mundial estima, contudo, que mais de 130 milhões de pessoas estejam em risco de se juntar a esse grupo ao longo do ano de 2020. “O número de pessoas com carências alimentares aumentou muito pelas consequências económicas da covid-19, com a perda de poder compra, e com a inflação”, expõe Pedro Matos. No Sudão, onde o antigo aluno está, neste momento, em missão, “a inflação é de 170%, os preços estão 50% mais caros do que há um ano e seis vezes mais altos que há 5 anos”, relata o alumnus. “A perda do poder de compra faz com que as pessoas muitas vezes não consigam ter uma alimentação equilibrada”, acrescenta. Este ano, o PAM bateu o recorde do orçamento anual, mas mesmo assim, e como partilha o antigo aluno “as ajudas sendo cada vez maiores não acompanham o crescimento das necessidades”.

Da engenharia à ajuda humanitária

Formado em Engenharia do Território no Técnico, Pedro Matos trabalhou uma década no setor espacial.  Foi aí que sentiu o despertar desta paixão: “estava a monitorizar conflitos em campos de refugiados com imagens de satélite sem pessoas e foi esse momento que me fez querer estar mais perto destes problemas”, recorda o alumnus.  Começou logo a concorrer, mas demorou 8 anos até conseguir entrar neste mundo. “Não conhecia ninguém do sistema que me explicasse o que estava a fazer mal. Nunca ninguém me tinha dito que a motivação é interessante, mas não é a única razão pela qual contratamos pessoas aqui. Nós somos grandes empresas humanitárias, precisamos de pessoas com experiência profissional e com as skills necessárias a cada função”, vinca. Hoje em dia, tenta explicar isto a quem o questiona sobre o que é necessário para ser combatente nesta batalha.

Há 12 anos no PAM, o antigo aluno já passou pelo Iémen, Mali, Quénia, Uganda ou Bangladesh. É apaixonado pelo que faz, e isso denota-se-lhe no tom com que narra as suas missões diárias. Já sentiu a sua vida em risco várias vezes, mas para si o mais árduo são as decisões que o obrigam a arriscar a sobrevivência de outros, como os momentos em que tem que decidir entre alocar meios aéreos para salvamento ou para distribuir comida. “O meu trabalho é olhar para as avaliações de vulnerabilidade, desenhar a melhor resposta, tendo em conta as circunstâncias, e organizar as distribuições de comida ou de dinheiro em cada país”, explica.  Nesta tarefa, as valências de gestão de projetos que adquiriu com a formação do Técnico é-lhe bastante útil. “Sinto que o meu ensino de Engenharia ajudou muito nesse sentido porque todos os problemas podem ser partidos em problemas mais pequenos, resolver cada um individualmente e depois juntá-los num lego”, garante.

O trabalho de Pedro Matos é baseado no terreno, o que torna inevitável que não dê inúmeras vezes de “caras” com a fome. A experiência obrigou-o a ganhar defesas para fazer da melhor forma o seu trabalho. “É muito difícil, e com o tempo temos que criar defesas. Estive no Iémen, no ano passado, e alimentámos 13 milhões de pessoas. Cada uma dessas pessoas tinha uma história muito pesada e triste, e perante estas situações ou escolhemos ir-nos a baixo com os testemunhos, ou através deles ganhamos escala para resolver o problema maior”, declara.

Em 2019, o PAM auxiliou 97 milhões de pessoas

Fundado em 1961, o Programa Mundial Alimentar é uma agência da ONU, com sede em Roma (Itália). É a maior organização humanitária a nível mundial e presta assistência a 97 milhões de pessoas, distribuídas por 88 países.

Desde a sua fundação que a agência atua em várias emergências globais. Só no ano passado, o PAM assistiu 97 milhões de pessoas, em 88 países.

Segundo o site da agência, num dia normal, o PAM tem cerca de 5600 camiões, 30 navios e 100 aviões em movimento, que transportam comida e outro tipo de assistência humanitária para quem precisa.

O objetivo global desta organização é reforçar a paz e a estabilidade, promovendo a segurança alimentar e uma melhor nutrição. Para tal, o PAM está envolvido numa série de projetos, incluindo os que visam reforçar as cadeias de abastecimento alimentar, os mercados locais e a resiliência aos riscos climáticos locais.

Os governos são a principal fonte de financiamento desta agência da ONU, sendo os maiores donativos provenientes dos EUA, Alemanha e do Reino Unido. Há também várias empresas e mecenas individuais a contribuir para esta missão ímpar de salvar vidas.