Ciência e Tecnologia

Entre a Alemanha e o Japão, com “um carinho especial” pelo Técnico – Entrevista a Uwe Czarnetzki

O professor catedrático da alemã Ruhr-Universität Bochum veio a Lisboa dar uma IST Distinguished Lecture sobre efeitos cinéticos em plasmas a baixas temperaturas.

A tarde do dia 13 de março viu uma das salas do Pavilhão de Física do Instituto Superior Técnico preencher-se de espectadores para mais uma IST Distinguished Lecture. A convite do Instituto de Plasmas e Fusão Nuclear (IPFN), foi a vez de Uwe Czarnetzki conduzir a palestra. Professor catedrático da alemã Ruhr-Universität Bochum, Czarnetzki elucidou a audiência durante mais de uma hora quanto aos efeitos cinéticos em plasmas a baixas temperaturas. Para o estudo destes sistemas, propôs também uma utilização combinada das equações de Fokker-Planck e de Langevin como ferramenta alternativa à equação de Boltzmann.

Dias depois, em entrevista ao Técnico, o físico explorou a experiência de dar esta Distinguished Lecture, comentou a sua relação com Portugal e partilhou memórias de uma carreira que o levou (e leva) a viajar frequentemente entre a Alemanha e o Japão, fomentando a colaboração científica entre estes e outros países.

 

Como é que foi a experiência de dar esta Distinguished Lecture?

Uwe Czarnetzki (UC): Fiquei muito contente por ver que a sala estava praticamente cheia. Em primeiro lugar, as pessoas não me atiraram com tomates, embora eu estivesse a falar demais [risos]. Em segundo lugar, as pessoas estavam realmente a ouvir e achei que era um público muito bom. Fiquei muito contente por dar esta palestra e penso que têm um grupo fantástico de estudantes e cientistas.

Relativamente às pessoas que conheceu no Técnico e no IPFN, quais as impressões que recolheu até agora?

UC: Excelente. Absolutamente excelente. O nível aqui é de classe mundial e as pessoas são incrivelmente simpáticas, o que torna a colaboração muito agradável.

Como é que explicaria o que apresentou na Distinguished Lecture a alguém sem conhecimentos de física?

UC: Isso é sempre um desafio [risos]. Os plasmas são “sistemas de muitas partículas”, e estes sistemas de muitas partículas têm uma dinâmica muito interessante. São extremamente versáteis. O que a maioria das pessoas não sabe, creio eu, é que, por exemplo, todos estes chips no computador que tenho à minha frente foram feitos por plasmas. Sem plasmas, não teríamos computadores, não teríamos o telemóvel que está a gravar esta entrevista… e são aplicados não só na microeletrónica, mas em muitos outros campos.

Temos plasmas em astrofísica [como os ventos solares e a formação de estrelas], plasmas geológicos, relâmpagos – que é um tópico extremamente entusiasmante; cria partículas incrivelmente rápidas -, jactos… tudo isto está relacionado com a física dos plasmas. Por último, mas não menos importante, voltando ao que me motivou inicialmente, há os plasmas na fusão. Penso que isso é algo que também deve interessar o público em geral.

Que tipo de propriedades foram discutidas durante a palestra?

UC: Na minha palestra, abordei certos aspectos dos efeitos cinéticos nestes plasmas de não-equilíbrio e algo em que o professor Luís Lemos Alves [docente do Técnico e investigador do IPFN] e eu trabalhámos durante vários anos – a obtenção de um ‘acesso alternativo’ para descrever o aquecimento dos electrões em plasmas de muito baixa pressão.

‘Baixa pressão’ significa que os caminhos livres para as partículas são muito grandes. Para esta situação, como alternativa à descrição padrão pela equação clássica de Boltzmann, também é possível descrevê-la por uma combinação das equações de Fokker-Planck e de Langevin.

A equação de Boltzmann, na minha opinião, é muito boa para calcular diretamente algo. Faz-me lembrar muitas vezes esta citação clássica sobre a equação de Schrödinger: “cala-te e calcula” [risos]. Ambas são equações particularmente adequadas para calcular coisas, mas é muito difícil compreender a física subjacente. Mas a combinação das equações de Fokker-Planck e Langevin obriga-nos muito mais a fazer afirmações claras sobre a física envolvida em cada passo.

Também abordei mais alguns tópicos na minha palestra, como a compreensão do chamado ‘aquecimento não local’ e das ressonâncias cinéticas.

O que é que o levou a interessar-se pela física?

UC: Bom, isso remonta à minha infância. Tínhamos uma espécie de “experiências prontas” que podíamos fazer. Acho que foi aos dez anos que construí o meu primeiro motor elétrico. Tinha de ligar todo um motor, ou construir um telefone e também fiz algumas experiências químicas e de electrónicas… isso começou relativamente cedo. Já na escola primária tinha um grande interesse pela matemática, também.

Depois, no meu percurso, há algo que é um pouco invulgar. Deixei a escola ao fim de dez anos e passei dois anos numa mina de carvão, onde tive formação profissional como eletricista, entre os 16 e os 18 anos. Mais tarde, mudei um pouco de ideias. Inicialmente pensei em ir para engenharia eletrotécnica, mas depois mudei para algo um pouco mais fundamental. E isso foi a física, já com uma orientação para a física dos plasmas, que era muito direcionada para a fusão nessa altura. “Energia de fusão para toda a humanidade” – quando se é jovem, normalmente gosta-se destas ‘grandes ideias’.

Acabou por frequentar a Ruhr-Universität Bochum…

UC: Sim. No primeiro semestre, perguntei-me se deveria mudar de curso, porque também gostava muito de história e de política. Mas o primeiro semestre correu muito bem e, em retrospetiva, posso dizer que ainda é possível divertirmo-nos com a história como passatempo e sermos físicos profissionais, ao passo que o inverso provavelmente não funciona [risos]. Nunca me arrependi de ter escolhido esta área. É mesmo isto que me “corre nas veias”, devo dizer.

O que destacaria no seu itinerário desde a licenciatura até hoje?

UC: O meu diploma de física estava efetivamente relacionado com a espetroscopia laser. Envolveu alguns diagnósticos de plasma, mas era efetivamente espetroscopia laser. O meu doutoramento foi totalmente dedicado à ótica não linear.

Depois do doutoramento, fui para o Japão como bolseiro de pós-doutoramento da ‘Sociedade Japonesa para a Promoção da Ciência’ (JSPS, na sigla inglesa). Fiquei pouco mais de um ano na Universidade de Kyushu [frequentemente também designada por ‘Kyudai’]. Quando regressei, o melhor conselho veio do meu supervisor – o meu mentor, dizendo melhor. “Se queres fazer carreira na física de plasmas, usa as tuas competências em lasers e diagnóstico de plasmas”. E foi o que fiz.

Depois fiz a minha habilitação, e isso foi em 1999. Em 2001, tornei-me professor catedrático na Ruhr-Universität Bochum, e aí estou desde então. Tenho estado muito empenhado no intercâmbio científico, no ensino e no intercâmbio cultural entre a Alemanha e o Japão. Fui cofundador da primeira associação mundial de antigos alunos da JSPS e fui durante oito anos o presidente desta associação.

Também colaborou com muitas outras instituições…

UC: Estou aqui, por exemplo [risos]. Esta vinda ao Técnico também traz um carinho especial porque, em 2017, organizou-se por cá a Conferência Internacional de Fenómenos em Gases Ionizados (ICPIG, na sigla inglesa). Nessa conferência, recebi o Prémio von Engel and Franklin, que também é bastante prestigiante. Tenho recordações muito especiais de Lisboa, portanto.

O professor Luís Lemos Alves e eu conhecemo-nos há muito tempo. Tivemos colaborações em várias comissões, revistas científicas, etc… Há um ano e meio, publicámos juntos um artigo muito extenso. É quase uma espécie de livro, com cerca de 100 páginas. É um pouco invulgar, mas espero que venha a ser útil. Agora estive por cá para a Distinguished Lecture, mas esta é uma continuação desse artigo. Estamos a lidar com a implementação numérica disto num programa que se pretende que se torne open source mais tarde. Toda esta experiência está, de facto, aqui em Lisboa.

Prefere o trabalho teórico ou experimental?

UC: A minha filosofia é que, para fazer progredir a ciência e, em particular, os objectivos da física dos plasmas, é necessário aquilo a que chamo O Tripé. Isso significa que precisamos de experiências, de modelação e de simulação. Se combinarmos estas três coisas, podemos realmente progredir muito bem, e não há um ponto de partida específico. Podemos começar em qualquer uma das três pernas d’O Tripé e, normalmente, andamos em círculos algumas vezes. Esta é um pouco a minha filosofia de fazer ciência. Em todo o caso, continuo a pensar que, no fundo, sou um experimentalista, mas também gosto de fazer teoria.

O que pensa do ensino?

UC: Posso dizer que, independentemente do que estivesse a ensinar, eu próprio aprendi sempre alguma coisa, em diferentes graus. É claro que, se fizermos o mesmo curso seis vezes, provavelmente já não aprendemos assim tanto. Ainda assim, podemos ter uma nova perspetiva e apresentar as coisas de forma diferente. Se mudarmos constantemente de disciplinas, basicamente ensinamos todas as áreas da física ao longo dos anos e isso também é incrivelmente bom para a nossa investigação, porque só podemos ensinar se soubermos as coisas. Por outro lado, podemos trazer os nossos conhecimentos da nossa própria investigação.

Que tipo de conselho daria aos estudantes?

UC: Mantenham a mente aberta. Penso que esta é a mensagem mais simples. A física dos plasmas é um domínio muito especial porque inclui ou toca muitos outros domínios – naturalmente, lidamos com partículas de carga, pelo que a eletrodinâmica é importante; trata-se de sistemas de muitas partículas, pelo que a física estatística é importante; em muitos casos, podemos descrevê-los como fluidos, pelo que é necessária a dinâmica dos fluidos; depois, como é óbvio, todos os plasmas interagem com átomos e moléculas, pelo que é necessária física atómica e molecular e, na fusão, até um pouco de física nuclear; depois, temos a interação com as superfícies, pelo que são necessários alguns conhecimentos de ciência das superfícies; e grande parte da aplicação dos plasmas está também relacionada com um ramo particular da química.

Pode dizer-se que é um desafio porque há tantos campos, mas na verdade é também uma parte importante do divertimento que se tem, porque não nos aborrecemos facilmente.

Quais são as suas expectativas para o futuro deste domínio?

UC: Tomemos, por exemplo, os propulsores de plasma. Atualmente, muitos dos satélites já em órbita ou em missões de longo alcance são operados por propulsores de plasma. A física destes dispositivos é muito complexa e ainda há muito espaço para investigação. Há também a microeletrónica e as aplicações para os têxteis e muitos, muitos, muitos outros domínios. Estas são as aplicações, e as aplicações trazem consigo uma série de desafios físicos. Penso que é essa a vantagem dos plasmas – a sua versatilidade.

No final, penso que O Tripé de que falava há pouco fará avançar este ramo da física. Não é tão fácil identificar uma aplicação ou um campo específico, mas penso que o divertido nos plasmas é que, atualmente, conhecem-se tantos fenómenos que provavelmente não se imaginariam há 20 anos. Por isso, penso que os plasmas continuarão a ser importantes – não apenas para aplicações, mas para a compreensão da natureza em geral.