Inês Machado, doutorada em Engenharia Biomédica pelo Instituto Superior Técnico no âmbito do Programa MIT Portugal, foi a vencedora da categoria de Doutoramento do Fraunhofer Portugal Challenge 2020. Na origem do galardão está um revolucionário sistema semelhante ao GPS, mas aplicado à neurocirurgia. O trabalho intitulado “Sneaking into the brain with a new GPS-like technology” apresenta uma solução tecnológica validada por neurocirurgiões, radiologistas e engenheiros do Massachusetts Institute of Technology (MIT), Harvard Medical School e o Brigham and Women’s Hospital, em Boston, que permite fazer uma remoção mais completa de tumores cerebrais e ajuda a evitar danos importantes nas estruturas neuronais. Estes avanços terão impacto direto não só na diminuição da morbilidade, mas também na redução do custo da saúde e na maximização da preservação das funções neurocognitivas do paciente.
Para a alumna de do Técnico este prémio assume-se como o reconhecimento do “meu trabalho de doutoramento dos últimos 4 anos”. O orgulho na distinção leva-a numa viagem até ao momento em que a ideia surgiria: “tudo começou com uma conversa informal com o Dr. Herculano Carvalho, médico neurocirurgião no Hospital de Santa Maria, em Lisboa e o Professor Jorge Martins do Centro de Sistemas Inteligentes do Instituto Superior Técnico, em 2015. Nessa conversa, discutimos os atuais desafios da neurocirurgia em Portugal e definimos um projeto a 4 anos para dar resposta ao mais ambicioso desses desafios – a correção do efeito do brain shift durante a remoção de tumores cerebrais em tempo real”, recorda Inês Machado. “Esta é uma solução tecnológica de grande impacto e benefício para a sociedade e ser reconhecido como o melhor trabalho de investigação com utilidade prática, desenvolvido em Portugal, é muito gratificante para nós”, vinca a galardoada.
Uma solução tecnológica open-source que já está a impactar o mundo da neurocirurgia
O cérebro é responsável pela maioria das funções do organismo e por muitas das áreas que nos definem – como os nossos pensamentos e emoções. Por isso mesmo, e como é sabido, procedimentos cirúrgicos que envolvam o cérebro são muito complexos tendo riscos elevados associados, uma vez que os tumores cerebrais costumam estar localizados em torno de estruturas cerebrais críticas. Danificar essas estruturas pode causar a perda de funções cerebrais, muitas vezes irreversíveis. “O objetivo principal da neurocirurgia é maximizar a extensão da remoção do tumor e, ao mesmo tempo, minimizar os danos ao tecido cerebral circundante”, sublinha Inês Machado.
Um dos grandes obstáculos neste tipo de cirurgias é distinguir tecido saudável de tecido tumoral no cérebro. A alumna do Técnico aprofunda esta ideia: “se abrirmos o crânio e olharmos para o cérebro a olho nu, o tecido cerebral saudável e o tumor cerebral parecem quase idênticos”. “Nas últimas décadas, os sistemas de neuronavegação têm vindo a revolucionar a prática neurocirúrgica permitindo que a cirurgia seja guiada por imagens do cérebro do paciente, adquiridas no pré-operatório, como é o caso da ressonância magnética”, aponta Inês Machado. “Estes sistemas funcionam como sistemas de posicionamento global do cérebro permitindo identificar qualquer ponto no cérebro do paciente e o seu ponto correspondente na imagem utilizada”, refere, imediatamente de seguida. “Além disso, estes sistemas permitem ainda realizar abordagens menos invasivas e evitar erros de localização com consequências graves, nomeadamente o acréscimo de defeitos neurológicos ou necessidade de re-intervenção”, complementa ainda a antiga aluna.
Porém, a neuronavegação tradicional apresenta algumas limitações importantes: “a principal reside na sua dependência de imagens pré-operatórias que, caso não sejam complementadas com imagiologia intraoperatória, poderá perder precisão dado o desvio importante das estruturas intracranianas no decorrer da cirurgia”, como destaca Inês Machado. Este fenómeno é, como explica a investigadora, “designado por brain shift e ocorre devido a múltiplos fatores como a retração cirúrgica do parênquima cerebral, efeito de gravidade e posicionamento do paciente, farmacoterapia realizada e aspiração de líquido cefalorraquidiano realizadas durante passos críticos da cirurgia, como a própria craniotomia e incisão da dura-máter”. O deslocamento das estruturas do cérebro no decorrer da cirurgia deve ser identificado e quantificado para que os planos da cirurgia possam ser reajustados. “Vários estudos quantificaram já este desvio, obtendo valores iguais ou mesmo superiores a 20 mm”, aponta Inês Machado.
Os impactos do brain shift na neurocirurgia são brutais e podem comprometer fortemente as neurocirurgias. “Em primeiro lugar, pode conduzir a uma remoção incompleta do tumor, o que significa necessidade de reoperação; em segundo lugar, danificar tecido cerebral saudável, o que significa que funções críticas do cérebro podem ser afetadas e por fim, procedimentos cirúrgicos mais longos, o que representa maiores custos de saúde”, realça a doutorada. Todos estes fatores dão origem a uma necessidade urgente de uma navegação adaptativa baseada em imagens atualizadas e obtidas no bloco operatório no decorrer da cirurgia. Foi para dar resposta a esta necessidade que Inês Machado desenvolveu este trabalho “que propõe a aquisição de imagem intraoperatória de ultrassonografia como uma técnica adjuvante viável no tratamento cirúrgico de tumores cerebrais”.
“Esta técnica permite a aquisição de imagem em tempo real e durante passos críticos da cirurgia, nomeadamente após a craniotomia e a incisão da dura máter”, clarifica a alumna. A solução tecnológica open-source desenvolvida por Inês Machado usa imagem intraoperatória em tempo real para correção automática do efeito de brain shift. “A aquisição de imagem de ultrassons 3D permite auxiliar a tomada de decisão em tempo-real e é muito mais acessível em termos de tempo e despesas – custos de scanner, consumíveis, tempo total de cirurgia”, esclarece a investigadora.
Uma das grandes conquistas desta solução tecnológica é “a redução do erro do procedimento cirúrgico num fator de 10”. “Ao contrário dos 2 cm de erro inicial, lidamos agora com um erro de 2 mm, o que significa que muito mais cirurgias podem ser realizadas com maior confiança na tecnologia usada”, evidencia Inês Machado. A validação da tecnologia por parte de neurocirurgiões, radiologistas e engenheiros de instituições de referência “mostrou que a nossa tecnologia é capaz de reduzir erros e alcançar precisão em diferentes conjuntos de dados, scanners e centros hospitalares”, vinca a alumna do Técnico. Este é o primeiro software capaz de determinar incerteza em diferentes regiões do cérebro durante a cirurgia, e também em vários tipos e localizações de tumores cerebrais.
A tecnologia com a rubrica da antiga aluna está pronta, disponível no mercado, é open-source, “e conta já com mais de 2000 downloads em todo o mundo. É open-source e foi amplamente validada e testada por médicos e engenheiros de instituições de referência”, como avança Inês Machado.
O percurso académico que a inspirou e preparou para um presente cheio de futuro
A vencedora do prémio Fraunhofer Portugal Challenge 2020 foi uma das alunas de doutoramento que pode usufruir de todas as oportunidades congregadas no Programa MIT Portugal. Em 2015, conseguiria uma das 10 bolsas de estudo disponíveis em Bioengenharia, o que lhe permitiria desenvolver 2 anos do seu trabalho no Instituto Superior Técnico e 2 anos em Boston, no MIT e em Harvard Medical School. “Num projeto de doutoramento, é fundamental estar-se rodeado dos melhores cientistas e mentores e tive a sorte de estar rodeada de pessoas que sempre me inspiraram e motivaram a fazer um trabalho rigoroso e profissional”, declara a doutorada.
Atualmente, Inês Machado é investigadora científica e professora assistente convidada de “Programação de Computadores” e de “Computação em Imagem Médica” no King’s College London. “Continuo a trabalhar diariamente na área de imagem médica, neste momento, num novo projeto ligado à cardiologia – o SmartHeart project que reúne investigadores do Imperial College London, King’s College London, Queen’s Mary University of London e Oxford University no sentido de desenvolver uma nova abordagem de diagnóstico de doenças cardiovasculares através de imagens de ressonância magnética”, partilha. O objetivo deste projeto será, tal como aponta a investigadora, “desenvolver um scanner de ressonância magnética inteligente que permita um diagnóstico rápido, eficaz e eficiente através da combinação dos avanços na aquisição, reconstrução e análise destas imagens com os avanços da inteligência artificial e aprendizagem automática”.
Fraunhofer Portugal Challenge 2020
Organizado desde 2010, o Fraunhofer Portugal Challenge visa incentivar a cooperação entre a indústria e a comunidade científica, motivando e premiando a investigação de utilidade prática, atribuindo um prémio aos alunos e investigadores que melhor contribuírem para a filosofia que está na base da visão do Fraunhofer AICOS: criar soluções tecnológicas com um impacto positivo na vida das pessoas, bem como a sua missão de criar ‘Tecnologia Notável / Fácil de Usar’. O concurso premeia as melhores propostas baseadas em teses de doutoramento e teses de mestrado, realizadas em universidades portuguesas, na área das tecnologias da informação. A avaliação do júri é feita de acordo com critérios como o grau de inovação, exequibilidade técnica, e potencial de mercado. A edição deste ano, fruto do contexto global, decorreu remotamente no dia 28 de outubro.
Os vencedores do concurso de ideias foram eleitos por um júri e um painel de especialistas na área das tecnologias, num evento que este ano, excecionalmente, decorreu remotamente. Na perspetiva e Inês Machado “os três finalistas desta edição do Fraunhofer Portugal Challenge 2020 apresentaram ideias brilhantes e com grande impacto na sociedade”.