O prémio Nobel da Fisiologia ou Medicina de 2023 foi conhecido esta segunda-feira, sendo atribuído a Katalin Karikó e Drew Weissman, investigadores cujo trabalho “permitiu o desenvolvimento de vacinas ARN-mensageiro (ARNm) eficazes contra a COVID-19”, segundo o Instituto Karolinska, órgão responsável pela atribuição do prémio.
Em reação à notícia, Miguel Prazeres, professor do Departamento de Bioengenharia do Técnico, partilha algumas impressões sobre o tema que havia já abordado em 2020, num texto de opinião do Jornal i em que invocara o trabalho de Karikó e Weissman. O professor de Introdução à Bioengenharia e de Terapia Génica e Celular fez ainda declarações no jornal Público e na revista Exame Informática.
A ideia de vacinas de mRNA chegou a ser vista, a princípio, como um cenário bastante implausível. O que motiva um cientista a manter-se obstinadamente a investigar uma certa questão, quando existem indícios de que pode tratar-se de um ‘beco sem saída’, ou até quando não há financiamento?
Miguel Prazeres (MP): Numa fase inicial, a motivação é, sem dúvida, a curiosidade científica, a vontade de experimentar novas soluções ou de testar hipóteses. Quando surgem sinais a indicar ‘beco sem saída mais à frente’, há algumas alternativas. Desistir é, certamente, a mais fácil. Continuar até ‘bater com a cabeça na parede’ está reservado aos mais obstinados. Aqui, a autoconfiança, resistência às críticas e resiliência face aos obstáculos são essenciais.
Num número muito reduzido de casos, haverá quem queira, depois de ‘bater com a cabeça na parede’, subi-la… Em teoria, parece-me importante que haja abertura para acolher e explorar ideias loucas, improváveis e ingénuas, sem preconceitos, deixando a cada um a liberdade e responsabilidade de persegui-las. Em teoria…
Analogamente à questão anterior, quando deve um cientista reconhecer que o melhor poderá ser mudar o tema da sua investigação ou a abordagem (correndo o risco de vir a perder a oportunidade de fazer uma descoberta inesperada)?
MP: Essa decisão depende da personalidade e modo de ser de cada um, e também, em algumas circunstâncias, do ambiente circundante (financiamento, espaço, colegas, etc…), sendo que, para muitos, não é fácil desistir de uma ideia, hipótese ou visão na qual se investiu muito tempo, recursos, credibilidade e energia física, intelectual e emocional. De qualquer modo, existe sempre um benefício associado ao trabalho daqueles que, em ciência e tecnologia, exploram temas e abordagens que se revelam infrutíferos. É que, com os seus insucessos e falhanços, indicam à comunidade que por ali não há saída. E isso tem um valor elevado. Por outro lado, verifica-se muitas vezes que as ideias/teorias/hipóteses mais “loucas” ou improváveis, mesmo estando erradas, podem estimular novas ideias, teorias e hipóteses em terceiros que se venham a verificar serem acertadas.
Hoje felicitamo-nos por Karikó & Weissman terem sido insistentes na sua investigação. Que benefícios trouxe esta tecnologia no combate à pandemia? E que benefícios poderá ainda trazer no futuro da medicina?
MP: Karikó & Weissman foram responsáveis pelo desenho e estudo de um conjunto de estratégias de modificação de moléculas de mRNA que permitiram reduzir a sua vulnerabilidade e propensão para gerar reações imunológicas adversas. Os benefícios que a tecnologia de mRNA – que ajudaram a desenvolver – trouxe ao combate à pandemia são por demais evidentes. As vacinas de mRNA tiveram um impacto enorme no combate à COVID-19, permitindo aumentar a imunidade coletiva em tempo recorde e, assim, diminuir de forma drástica a mortalidade e morbilidade associada à doença. Para além da eficácia demonstrada, todos os dados disponíveis indicam que também a segurança ficou amplamente demonstrada.
Relativamente a benefícios futuros, e para além das vacinas profiláticas, que ajudam a prevenir doenças infeciosas como a COVID-19, perspetiva-se o desenvolvimento de vacinas de mRNA terapêuticas, que permitem estimular o sistema imunitário a combater doenças oncológicas. Mas existem outras aplicações potenciais da tecnologia de mRNA em estudo, por exemplo no tratamento de doenças genéticas, em medicina regenerativa ou no tratamento de doenças autoimunes.
Prevê que a atribuição deste prémio possa vir a encorajar mais investigação futura na área das vacinas de mRNA?
MP: Sem dúvida que a atribuição do prémio Nobel sinaliza que se deve apostar na área. De qualquer modo, a investigação em vacinas de mRNA explodiu já, em consequência da demonstração da importância da tecnologia de mRNA que testemunhámos em tempo real durante o período da pandemia de COVID-19. Todos nós beneficiámos, direta ou indiretamente, das vacinas de mRNA. Apostar em mais investigação na área parece óbvio.
Que outros avanços na medicina gostaria de ter visto serem premiados?
MP: Gostaria que áreas que cruzam com a engenharia como a aplicação da inteligência artificial à Medicina ou o desenvolvimento da Medicina Genómica estivessem sob observação de futuros comités Nobel.