Ciência e Tecnologia

Nobel da Química 2025 – “Um grande contributo à humanidade” marca a descoberta das redes metalo-orgânicas

Professores do Técnico analisam a distinção de Susumu Kitagawa, Richard Robson e Omar Yaghi pelo desenvolvimento das estruturas metalo-orgânicas (MOFs).

Moisés Pinto,  professor do Técnico e investigador no Centro de Recursos Naturais e Ambiente (CERENA), e Vânia André, investigadora no Centro de Química Estrutural (CQE), comentam a atribuição do Prémio Nobel da Química 2025. A distinção foi concedida a Susumu Kitagawa, Richard Robson e Omar Yaghi pelo trabalho pioneiro no desenvolvimento de redes metalo-orgânicas (Metal-Organic Frameworks – MOFs), uma nova classe de materiais com “potencial para diversas aplicações”.

Como explica os trabalhos premiados pelo Nobel da Química 2025? De que forma justificam a atribuição do Nobel?

Moisés Pinto (MP) – A academia Sueca atribuiu este ano o Nobel da Química aos investigadores Susumu Kitagawa, Richard Robson e Omar Yaghi pelo trabalho pioneiro no desenvolvimento de redes metalo-orgânicas (no inglês Metal-Organic Frameworks – MOFs). No final da década de 80 início da de 90, Richard Robson reportou a possibilidade de se criarem redes constituídas por centros com iões metálicos coordenados com certas moléculas orgânicas (ligandos), de forma regular. Alguns anos mais tarde, de forma quase simultânea, Susumu Kitagawa e Omar Yaghi demonstraram que essas redes podiam ser construídas de forma a termos estruturas tridimensionais, com porosidade interna regular à escala molecular, e apresentaram as primeiras estratégias para o seu design controlado. Estes trabalhos abriram uma grande via de investigação no desenvolvimento de novos materiais deste tipo, tendo sido exploradas nas décadas seguintes muitas possíveis aplicações.

Os materiais com porosidade controlada, ao nível da nanoescala, i.e., com poros da dimensão de moléculas pequenas, eram já bem conhecidos muitas décadas antes dos trabalhos iniciais sobre as MOFs. No entanto, tendo as MOFs uma natureza híbrida, ou seja, com partes do material constituídos por nodos inorgânicos e por ligandos orgânicos, as possibilidades de se poder fazer um design da estrutura porosa são praticamente infinitas. Na realidade, nas últimas duas décadas foram reportados dezenas de milhares de novas estruturas, com diferentes ligandos e com nodos inorgânicos com diferentes iões metálicos, com propriedades muito diferentes, não apenas ao nível da dimensão dos poros, mas também devido aos diferentes ambientes químicos que podem ser obtidos dentro desses poros. Isso permite que dentro dos poros se possam alojar moléculas de líquidos ou gases (i.e. o fenómeno de adsorção), de forma mais controlada, seletiva e com interações específicas com as paredes dos poros.

Vânia André (VA) – O comité encarregue dos prémios destacou que os três galardoados “criaram novas salas para a química”, através do “desenvolvimento de um novo tipo de arquitetura molecular”. As construções que criaram, as estruturas metalo-orgânicas, são especiais porque têm grandes cavidades nas quais vários tipos de moléculas podem entrar e sair.

Estas estruturas, frequentemente designadas no meio científico pela sua abreviatura em inglês, MOFs (metal-organic frameworks), são materiais feitos de “blocos de construção” – átomos metálicos e moléculas orgânicas – ligados entre si formando uma rede tridimensional, semelhante a um andaime, obviamente ‘super’ pequeno e invisível a olho nu. Estes compostos têm assim muitos poros. São precisamente esses poros (as ditas “novas salas para a química”) que permitem que as diferentes moléculas possam entrar e sair deste tipo de arquitetura supramolecular. Na prática, essas cavidades permitem que gases e outras substâncias possam fluir, ser armazenadas, separadas ou utilizadas em reações, entre outras possíveis aplicações. Concretamente, os investigadores utilizaram estas arquiteturas moleculares para recolher água do ar do deserto, extrair poluentes da água, capturar dióxido de carbono ou armazenar hidrogénio.

A partilha deste prestigiado prémio pelos 3 investigadores justifica-se pelo trabalho complementar que desenvolveram, desde a exploração da ideia até à consolidação da síntese e demonstração do seu imenso potencial ao nível das várias aplicações. Richard Robson desenvolveu o conceito inicial, provando ser possível criar estruturas com espaços internos definidos. Susumu Kitagawa aumentou a estabilidade e adaptabilidade dessas redes, permitindo flexibilidade e o uso de diferentes metais e ligandos. Omar M. Yaghi introduziu a “química reticular”, ou seja, o conceito de blocos moleculares (tipo peças de lego) para construir redes previsíveis, além de criar MOFs com grandes áreas internas para armazenar gases como hidrogénio e capturar CO₂.

Os trabalhos dos laureados resultaram assim no aparecimento de uma nova classe de materiais que se destaca pela sua vasta aplicabilidade em diversas áreas da ciência e da tecnologia. Estas estruturas inovadoras e extremamente versáteis abriram caminho para o desenvolvimento de materiais que podem ser ajustados a necessidades específicas, e assim responder a necessidade prementes da sociedade, ou seja, os três laureados prestaram indiscutivelmente um grande contributo à humanidade, tendo assim cumprido a missão de Alfred Nobel.

Que avanços para a ciência resultaram do trabalho destes investigadores? Que benefícios poderão ainda trazer no futuro?

MP –
Este tipo de materiais, que podem alojar no seu interior moléculas de diferentes tipos, podem ser desenhados para serem mais seletivos para um certo tipo de moléculas do que para outros. Isso permite fazer a separação de misturas líquidas ou gasosas, a descontaminação de águas e captura de poluentes do ar. Podem sem mesmo desenhadas MOFs para captar (i.e. adsorver) a humidade do ar e libertar depois na forma de água líquida. A adsorção e desadsorção é acompanhada de libertação e absorção de calor, o que permite a sua aplicação em sistemas de refrigeração. A introdução de moléculas nos poros dos materiais pode alterar de forma significativa as propriedades óticas, magnéticas e elétricas desses sólidos e permitir a sua aplicação com sensores. A elevada porosidade das MOFs tem sido também explorada para o armazenamento de gases a baixas pressões e como veículos para o armazenamento e libertação local de moléculas com efeitos terapêuticos.

Muitas destas possíveis aplicações têm sido demonstradas com sucesso ao nível laboratorial, conhecendo-se agora razoavelmente bastantes estruturas de MOFs para estas aplicações. Os maiores desafios atuais, para que possamos vir a ter uma aplicação generalizada e comercial das MOFs, estão ligados à sua produção em larga escala de forma economicamente viável e em condições ambientalmente sustentáveis. Há também a necessidade de adaptar a forma destes materiais, que são normalmente obtidos a forma de pós finos após a síntese, aos contextos e necessidades específicas de cada aplicação. Antecipo, por isso, uma atividade intensa de investigação e desenvolvimento na Engenharia Química e de Materiais envolvendo MOFs, durante os próximos anos.

VA – As MOFs têm vindo a demonstrar, de forma inequívoca, que a Química assume um papel central na resolução de grandes desafios globais. Até porque a descoberta desta nova classe de compostos vai muito além do trabalho desenvolvido diretamente pelos três laureados.

A investigação sobre MOFs é atualmente realizada em todo o mundo por uma vasta comunidade científica, focando-se em aplicações específicas que abrangem áreas tão variadas como a catálise, energia, soluções ambientais, medicina e farmácia.

Entre as aplicações já comprovadas destas estruturas, destacam-se o combate à poluição ambiental, onde as MOFs são utilizadas para capturar CO₂ e remover poluentes das águas, por exemplo; o armazenamento de energia, permitindo soluções inovadoras para guardar gases e combustíveis; a produção de semicondutores, fundamentais para o avanço tecnológico; e o aumento da eficácia no combate a doenças, ao possibilitarem novas abordagens para transporte e entrega controlada e localizada de fármacos.

É ainda de mencionar que o avanço das MOFs foi (e continua a ser!) impulsionado por novas técnicas de síntese e modificação, ampliando as opções de materiais disponíveis, havendo já dezenas de milhares de MOFs reportados. Além disso existem já métodos que permitem prever quais as combinações ideais de ligandos e metais para otimizar propriedades, integrando assim a parte experimental e com a de computação.

Temos hoje a certeza de que estas arquiteturas moleculares peculiares representam efetivamente “novas salas para a química”, sobre as quais ainda temos muito mais a explorar.

Que outros avanços na química gostaria de ter visto serem laureados com o Nobel deste ano?

MP – O trabalho desenvolvido por Gérard Férey, foi também pioneiro para o desenvolvimento dos MOFs, particularmente no conceito das “secondary buiding units” que são fundamentais para se compreender e desenhar estruturas mais complexas, robustas e com cavidades maiores. Os seus trabalhos no início dos anos 90 com fosfatos metálicos porosos incorporando ligandos orgânicos, foram também de enorme importância para o desenvolvimento de materiais híbridos porosos, tais como as MOFs. Durante a década de 2000 foi um dos investigadores mais relevantes no desenvolvimento de novas estruturas e com contribuições únicas sobre a compreensão dos mecanismos complexos da cristalização destes materiais. Não fosse ter falecido em 2017, talvez o seu nome estivesse agora entre os laureados.

VA – Sendo a sustentabilidade da síntese dos nossos compostos uma das preocupações na investigação que desenvolvemos, gostaria de ver um prémio Nobel na área da Química sustentável ou catálise verde, reconhecendo avanços significativos em química ambiental. Estes avanços incluem métodos que possam substituir processos industriais poluentes por alternativas mais limpas, com maior rendimento e seletividade.

Um exemplo é a mecanoquímica, considerada uma das tecnologias emergentes com mais potencial de mudar a química tradicional. É uma tecnologia que é utilizada no IST e onde existem projetos europeus a decorrer, nomeadamente o projeto IMPACTIVE, do qual fazemos parte. Este projeto tem por objetivo a síntese de fármacos por diferentes abordagens mecanoquímicas e vai desde a investigação à indústria e inovação. A mecanoquímica reduz drasticamente o uso de solventes nos processos de síntese, representado assim uma abordagem mais limpa, eficiente e sustentável, com potencial para transformar diversas áreas, desde a produção de fármacos até ao desenvolvimento de novos materiais, incluindo os MOFs.

Acredito que a mecanoquímica representa um forte contributo para a química sustentável e espero que venha a ser reconhecida como tal, talvez até ao mais alto nível.

De que forma é que o trabalho que desenvolve se relaciona com o dos premiados?

MP – Na nossa equipa de investigação trabalhamos com MOFs há mais de uma década. Temos desenvolvido uma investigação significativa na aplicação de MOFs em processos de separação por adsorção, para aplicação na purificação de biogás, gás natural, captura de dióxido de carbono e separações de olefinas/parafinas. Todas estas separações são tecnicamente desafiantes e os processos atuais pouco eficientes energeticamente.

Outra aplicação muito relevante que temos explorado é na descontaminação/purificação do ar interior de edifícios. Além de ser muito relevante para a saúde das pessoas dentro dos edifícios, há outras situações ainda mais desafiantes que se relacionam com a conservação de património cultural, pois muitos artefactos são extremamente sensíveis a certos poluentes do ar interior. Desenvolvemos um trabalho muito interessante de aplicação de MOF nos últimos cinco anos no âmbito de um projeto europeu, o NEMOSINE, para a conservação de filmes e fotografias em arquivos. Atualmente estamos a coordenar um projeto europeu ainda mais ambicioso, o SIMIACCI, que envolve a aplicação de MOFs para a proteção de património cultural em Museus, Galerias, Arquivos e Bibliotecas em toda a europa.

Na área biomédica, trabalhamos há mais de uma década na aplicação de MOFs para o armazenamento e libertação controlada de óxido nítrico, para fins terapêuticos. Em 1998, os investigadores Robert F. Furchgott, Louis J. Ignarro, e Ferid Murad receberam o prémio Nobel da medicina pela identificação desta molécula como sinalizadora em muito processos fisiológicos. O principal obstáculo à sua utilização em terapias é a sua elevada toxicidade em, i.e. os efeitos terapêuticos são sempre atingidos com doses muito reduzidas, e o facto de ser uma molécula gasosa, com todas as dificuldades inerentes à utilização de um gás. Hoje sabemos desenhar alguns MOFs para que que o óxido nítrico se ligue fortemente no interior dos seus poros, para que seja posteriormente libertada de forma controlada nos locais específicos que necessitam desse suplemento de óxido nítrico. Esperamos que em breve esses nossos esforços se traduzam em aplicações clínicas.

Finalmente, temos estado recentemente muito envolvidos no desenvolvimento de processos e respetiva avaliação técnico-económica para a produção de MOFs. Na realidade, muitas das aplicações esperadas requerem a produção destes materiais numa escala já bastante significativa. No entanto, tal só acontecerá se os processos de produção estiverem bem estabelecidos e se forem economicamente viáveis.

VA – O trabalho desenvolvido pelos laureados representa a base conceptual das BioMOFs (redes metalo-orgânicas bio-inspiradas). A estrutura central da rede metalo-orgânica pode ser adaptada e direcionada especificamente para fins biológicos e aplicações biomédicas. As BioMOFs assentam em blocos de construção, que permitem projetar redes com características personalizadas. Isso inclui a possibilidade de controlar o tamanho e a forma dos poros, de forma a adequar as redes para diferentes finalidades biomédicas. Além disso, envolvem o desenvolvimento de métodos de síntese que garantem a estabilidade das estruturas, bem como a modulação das suas propriedades físico-químicas.

Todos estes princípios são fundamentais para aplicações como o desenvolvimento de antibióticos e antimicrobianos mais eficientes, sistemas inovadores de transporte e libertação controlada de fármacos, e para promover interações seletivas com células humanas e microrganismos. Dessa forma, as BioMOFs representam uma interface promissora entre a química fundamental e soluções efetivas na área da saúde.

Um desafio fundamental do trabalho com BioMOFs é adaptar essas estruturas para que sejam biocompatíveis, assegurando que sejam seguras e eficazes no corpo humanos. Daí a abordagem explorada no trabalho que desenvolvemos no meu grupo de investigação no CQE-IMS-IST consistir na utilização de princípios ativos já comercializados, principalmente antimicrobianos. Arrumando estes fármacos como um dos blocos de construção dos BioMOFs, conferimos novas propriedades aos antimicrobianos existentes, tornando simultaneamente possível controlar a sua libertação. Já provámos que a este tipo de abordagem usando metais “seguros”, como zinco ou magnésio, levam ainda a um efeito sinergístico, ou sejam potenciam a atividade antimicrobiana do fármaco já existente. Este tipo de conceito apresenta-se como um cenário alternativo para resolver questões relacionadas com o desafio global da resistência antimicrobiana.

Portanto, o trabalho com BioMOFs está profundamente conectado ao dos MOFs laureados, mas situa-se numa fronteira aplicada e alternativa, na qual é necessário levar os conhecimentos fundamentais para um domínio biomédico, agregando requisitos extras como biocompatibilidade, estabilidade em meio aquoso e seletividade para microrganismos.

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