As doenças cardiovasculares são a principal causa de morte a nível mundial, mas também uma das principais causas de incapacidade. Em Portugal, por exemplo, as doenças cardiovasculares são responsáveis por 29,5% das mortes. No combate a estes números, e na monitorização permanente da atividade cardíaca, os dispositivos do tipo wearable são aliados de peso, possibilitando a observação e recolha de dados no nosso quotidiano, através de sensores integrados em dispositivos para uso pessoal. São múltiplos os relatos que descrevem o impacto destes dispositivos, nomeadamente dos smartwatches, que são já dispositivos médicos certificados, passíveis de utilização em diagnóstico com base em Eletrocardiografia (ECG) de uma derivação.
O professor Hugo Silva, docente do Departamento de Bioengenharia (DBE) e investigador do Instituto de Telecomunicações (IT), trabalha na área da monitorização pervasiva de sinais biomédicos há algum tempo, e conhece bem as mais-valias destes dispositivos. “Só o facto do wearable desencadear a procura de assistência especializada poderá fazer a diferença entre uma intervenção preventiva e uma ocorrência grave”, declara o docente do Técnico. Mas e se a todas estas vantagens dos dispositivos wearable, pudesse ainda ser adicionado o facto de esta monitorização poder ser feita sem exigir nenhuma ação do utilizador, integrando-a nas nossas ações quotidianas? Pois bem, é isso que dispositivos invisíveis pretendem fazer, “infiltrando-se” na nossa rotina de forma discreta, enquanto registam e avaliam a atividade cardíaca. O docente do Técnico é coautor de um artigo publicado na revista Scientific Reports no qual é descrito a conceção e avaliação experimental de um sistema de monitorização de ECG invisível para utilização doméstica.
Antes de mais, o docente do Técnico faz questão de salientar que este trabalho surge “na sequência de mais de uma década de investigação realizada no grupo Pattern and Image Analysis (PIA) do IT, sob a coordenação da professora Ana Fred, no qual o objetivo é possibilitar a monitorização pervasiva de sinais biomédicos, através de sensores integrados em objetos do quotidiano e sem alterar os padrões regulares de interação do utilizador”.
Ainda que constituam um progresso significativo no domínio do registo de ECG, para o fazer, os wearables requerem alterações às rotinas diárias dos indivíduos como, por exemplo, a necessidade de realização de um gesto específico para obtenção do sinal, ou o recarregamento regular das baterias. O trabalho que a equipa de Hugo Silva tem vindo a desenvolver representa uma mudança de paradigma para dispositivos do tipo invisible, “que permitem a observação dos sinais biomédicos do sujeito como uma verdadeira extensão do seu quotidiano”, tal como nos explica o próprio. “As potenciais vantagens são tremendas, uma vez que o registo do sinal é feito de forma completamente automática e os sensores podem ser incorporados numa grande diversidade de objetos”, adiciona o docente do DBE.
No trabalho em questão a equipa estudou “um problema muito específico para a integração dos sensores no ambiente do quarto de banho, em particular a textura da interface com o sujeito com vista à aplicação num assento sanitário, que é um objeto incontornável no nosso dia a dia”, destaca o professor Hugo Silva. “De acordo com o nosso melhor conhecimento, existe um número muito reduzido de trabalhos semelhantes a nível mundial, e a nossa abordagem diferencia-se por estar muito direcionada para a industrialização do conceito, propondo soluções compatíveis com processos industriais correntes”, sublinha, em seguida, o docente.
O professor Hugo Siva considera que este é “aliás, um excelente exemplo de colaboração e transferência de conhecimento entre a academia e a indústria, uma vez que o trabalho é realizado em parceria com a empresa OLI, S.A., líder na área de soluções para quarto de banho”.
Os autores do artigo intitulado “Design and evaluation of a novel approach to invisible electrocardiography (ECG) in sanitary facilities using polymeric electrodes” propõem um novo modelo de sensores e elétrodos. No decorrer da investigação foram explorados novos materiais, e foi criado um sistema para recolha de dados sob a forma de assento de sanita, permitindo medições de ECG como uma extensão do uso regular de instalações sanitárias, sem necessidade de recorrer a outros dispositivos. Com o propósito de avaliar a abordagem proposta, foram realizadas medições em 10 indivíduos saudáveis utilizando este sistema.
A investigação anterior e a experiência acumulada da equipa, em particular o projeto SmartHeart patrocinado pelo IT, acabou por ser um bom ponto de partida para estes resultados que, como vinca o docente do Técnico, “foram efetivamente muito positivos e encorajadores”.
Este trabalho representa um passo importante para demonstrar a viabilidade da aquisição de dados de ECG nas coxas. O professor Hugo Silva lembra que conceptualmente este até pode parecer um problema simples, mas “é de facto um passo importante, em particular porque apresenta um conjunto de soluções industrialmente escaláveis para o caso de uso em questão”. “Os elétrodos estabelecem a ligação entre o sensor e o sujeito, constituindo por isso uma componente crítica do sistema. Para mais, neste contexto de aplicação existem questões relacionadas com ergonomia, conforto, produção, e outras dimensões, que conseguimos estudar no âmbito do nosso trabalho”, refere o investigador do IT.
O carácter inovador e os resultados alcançados, e bem expressos no artigo, foram determinantes para o destaque que o mesmo obtém com esta publicação na prestigiada revista Scientific Reports, uma vez que, como conta o investigador do IT, “desde o início o trabalho recebeu comentários muito construtivos e positivos por parte dos revisores”. “Aliás, uma das sugestões iniciais relacionava-se com a inclusão de uma análise comparativa entre a nossa abordagem e outros sistemas de estado da arte, mas acabámos por salientar a ausência de tal referencial, o que foi reconhecido pelos revisores, reforçando assim o carácter inovador do dispositivo, finaliza o docente.
O potencial destes dispositivos na medicina preventiva e não só
Para o docente do Técnico é evidente “que este tipo de dispositivos poderá desempenhar um papel importante no domínio da medicina preventiva, especialmente quando combinados com métodos robustos para análise automática de grandes volumes de dados, como os proporcionados pelos avanços recentes no domínio da inteligência artificial”. “É importante reforçar que as abordagens clássicas são insubstituíveis, e terão sempre o seu lugar no processo de diagnóstico, contudo podem aparecer tarde demais no progresso da doença”, realça o docente.
Por possibilitar a recolha de um maior volume de dados, de forma mais frequente, e, no limite, sem a necessidade de intervenção explicita do sujeito, a potencialidade dos dispositivos invisíveis é ainda maior. Além disto, o investigador refere que às vantagens deste tipo de dispositivos se podem acrescentar outros argumentos que corroboram o seu valor na área de saúde, como “o facto de alguns eventos passarem despercebidos nos processos de observação momentânea”, “ou a necessidade crescente de soluções para telemedicina”.