Campus e Comunidade

“A conspirar e a rir havemos de mudar o mundo”

Entrevista com o professor distinto do Técnico, José Tribolet.

Em 1971, José Tribolet terminava o curso de Engenharia Eletrotécnica com a classificação final de 18 valores. De aluno brilhante passaria a professor. Podia ter sido tantas outras coisas, mas sonhava fazer coisas com significado e acima de tudo trabalhar com liberdade. Foi isso que encontrou na universidade e foi isso que o fez ficar. Ainda não tinha 30 anos e já era professor catedrático. Podia ter-se acomodado, mas fez da responsabilidade um desígnio de mudança. É um dos nomes mais sonantes da Ciência e Tecnologia em Portugal dos últimos 40 anos. Mas é mais do que isso, é um rosto icónico do corpo docente do Técnico, professor distinto da instituição, e um dos maestros da escola na área da Engenharia Informática. No dia em que se jubila quisemos saber o que motivou- e ainda motiva- tanta ousadia.

Qual é a sua primeira recordação como professor?
Comecei a dar aulas como monitor, estava no meu 5.º ano do Técnico. Fui convidado pelo professor Abreu Faro para ensinar com outros colegas uma cadeira que tinha sido no âmbito da reforma do curso de Engenharia Eletrotécnica. Estava previsto virem uns professores doutorados de Inglaterra para a lecionar, mas, entretanto, ainda não tinham chegado. O primeiro monitor oficial, ou não sei se já assistente dessa cadeira, foi o professor José Manuel Fonseca de Moura. No segundo ano entrei, juntamente com outros colegas, como monitor para ensinar alunos um ano mais novos.

Como é que se preparou para o desafio?

Comprámos uns livros e devorámos o conteúdo a ver se percebíamos aquilo. (risos) Para mim a entrada em modo de sala de aula não foi nada de especial porque vinha do Colégio Militar, onde estive 7 anos a conviver com mais de 600 colegas e no fim do último ano era o comandante de batalhão. Estava habituado a falar às massas, a comandar e liderar e, portanto, não me senti melindrado quando comecei a dar aulas. Estávamos lá e apresentávamos a matéria com toda a simplicidade, às vezes entupíamos e assumíamos isso sem problemas. A distinção entre professor e aluno não existia nas nossas aulas, éramos apenas alunos mais velhos que já tinham estudado aquilo e estavam a passar matéria aos mais novos.

Sempre quis ser professor ou foi a sua condição de aluno brilhante que o levou até à profissão?

É interessante essa pergunta. Eu nunca sonhei ou deixei de sonhar ser professor. Sonhei em fazer coisas com significado e, portanto, fui seguindo um percurso que me levasse a isso. Por outro lado, sonhei sempre ser dono de mim próprio e não ter que estar a obedecer a pessoas sem competência.

Assim, foi de forma muito natural que acabei por ficar no Técnico e desenvolver a minha carreira na Universidade porque realmente é um espaço de liberdade, e sinto isso profundamente. Tudo o que fiz ao longo dos tempos foi tirar partido dessa responsabilidade, o que implica ensino e investigação, mas também intervenções perante assuntos importantes para a sociedade, sempre com a autoridade que vem desta posição.

Por outro lado, há algo em que acredito muito e que tem a ver com a minha visão do que é a nossa missão na Terra: temos obrigação de nos reproduzimos e fazermos acontecer melhor do que sabemos fazer, e, portanto, é natural que nesta atividade de ensino e de investigação nos seja permitido “fabricar” pessoas melhores que nós, e essa acabou por ser a minha grande vocação e desejo desde o princípio.

“Fiquei com uma grande responsabilidade porque precisava descobrir o que ia fazer com aquele poder, porque queria fazer algo”

O que leva um doutorado com uma carreira promissora nos EUA a querer voltar para Portugal?

Eu acabei o meu doutoramento no período imediatamente após a revolução, ou seja, uma época muito complicada. Fui convidado para ficar no MIT como professor e recusei porque Portugal tinha pago a minha bolsa e eu tinha obrigação moral de voltar. Depois do doutoramento, surgiu a oportunidade de ficar nos laboratórios Bell que eram sem dúvida uma fábrica de conhecimento, uma coisa inacreditável com um rigor imenso.

O meu plano era ficar um ano e absorver o máximo de conhecimento possível. Quando informei os meus patrões de que ia voltar para Portugal, eles disseram que o meu lugar ficava aberto durante 5 anos. Portanto, não há nada de heróico na minha decisão de arriscar porque tinha uma rede destas.

Foi apenas essa obrigação de retribuir que o fez querer voltar?

Também, mas não só. Eu e a minha mulher decidimos que ficar na América não era o caminho. Os anos que estivemos lá permitiram-nos conhecer muito bem tudo e percebemos que não queríamos que o nosso filho fosse lá educado e também não gostaríamos de envelhecer lá. As pessoas reformadas que conheci lá tinham tudo e estavam vazias ao mesmo tempo.

Decide então regressar e pouco tempo depois avança para a criação do INESC?

Quando voltei em 1978 comecei a dar as minhas aulas de sistemas digitais e arquitetura de computadores. A ideia do INESC nasceu de várias conversas com o Lourenço Fernandes e também com o José Fonseca de Moura.Tínhamos duas grandes linhas de ação em mente, uma no Departamento Engenharia Eletrotécnica e de Computadores que estava com o mesmo ensino há anos; e, por outro lado, queríamos um espaço, equipamentos e precisávamos dinheiro para fazer investigação. E aí dá-se uma fase de uma extrema criatividade que se resume numa frase que repetíamos muito: “a conspirar e a rir havemos de mudar o mundo”.

Ao nível do departamento eu e o Fonseca de Moura percebemos obviamente que era importantíssimo ficarmos catedráticos. Na altura éramos auxiliares e ia sair uma nova legislação da carreira docente e todos os professores que tivessem feito agregação passavam a catedráticos. O Fonseca de Moura era mais velho do que eu e fez a agregação sem problemas. Eu tinha acabado de chegar e fui ver o que é que tinha de fazer para ter a agregação e achei que era algo trivial. Fui pedir conselhos aos meus professores e quase todos disseram que era algo para pessoas em outra fase da vida. O único que me disse para não hesitar foi o professor João Figanier. Eu decidi avançar e dei-me muito bem. Em dezembro de 1979 fiquei catedrático, ainda nem tinha 30 anos e isso deu-me uma plataforma de ação que pouca gente tem porque não tive que pensar como é que podia evoluir a fotografia para ir progredindo, nem que servir alguns patrões. Mas também fiquei com uma grande responsabilidade  porque precisava descobrir o que ia fazer com aquele poder, porque queria fazer algo…

A verdade é que não se acomodou e foi fazendo muito…

A primeira coisa que eu e o Fonseca de Moura fizemos juntos foi criar o primeiro mestrado em Engenharia  de Telecomunicações e Sistemas.

Além disso, começamos a investigar como é que podíamos arranjar um instrumento para poder fazer atividade de investigação e criar conhecimento, mas fora da máquina do Estado, e tivemos a ideia de criar uma associação privada sem fins lucrativos.

Os primeiros tempos foram essencialmente de procura e desenho das condições para depois fazermos uma coisa que foi fácil: ir buscar pessoas competentes, experientes, capazes, com vontade de trabalhar, tendo inicialmente nos primeiros 5 anos os CTT-TLP a dar-nos os meios para fazermos a nossa investigação. Depois fomos crescendo progressivamente e alargando a estrutura a outras cidades.

Sente que a criação do INESC foi o grande marco da sua carreira?

Houve outros, nomeadamente mais relacionados com o ensino, como:  a criação do mestrado que já referi, a reforma curricular com a qual se criou um novo ramo de sistemas e computadores, a presidência do departamento de Engenharia Eletrotécnica e de Computadores,  e a criação do curso de Engenharia Informática e de Computadores. A meio dos anos 90 juntámo-nos e conseguimos criar o Colégio de Engenharia Informática na Ordem dos Engenheiros, e em 1998 criamos o departamento de Engenharia Informática.

Já neste século as duas coisas em que estive envolvido e que são mais de louvar foi a criação de um ramo em Engenharia Informática e Sistemas da informação, e o lançamento dos cursos de pós-graduação para profissionais na área dos sistemas da informação que já contam com 20 edições.

Além disto, eu e o Lourenço Fernandes também estivemos envolvidos na conceção e o desenvolvimento do Taguspark que ainda não é, hoje em dia, aquilo que idealizamos: um verdadeiro campus universitário com residências.

Em termos de marcos acho que é isto, e bom estou a jubilar-me do Técnico não me estou a jubilar do INESC…

“Fala de histórias que são interessantes e que quero ouvir porque aprendo com elas”

Nunca pensou seguir carreira na política?

Foi uma das primeiras decisões que tomei e devia merecer um Prémio Nobel por isso. Conhecendo-me como me conheço achei que era um mau uso das minhas capacidades.  Ia ter um ataque cardíaco rapidamente (risos). É muito difícil, hoje em dia, estar na política sem ter que fazer um conjunto de coisas que nos fazem vomitar à noite, coisas que vão contra os meus princípios e que provavelmente teria que fazer.

Ainda assim nunca se coibiu de transmitir a sua perspetiva em relação a determinadas coisas, criticando muitas vezes a ação do governo. Acredita que esta posição crítica é a melhor forma de ajudar a melhorar o país?

Eu só falo sobre certos domínios e sobre os quais tenho conhecimento. E muito pouco digo eu, acredite! Há alguns assuntos que me tocam profundamente como o sistema de justiça que poderia ser muito mais eficaz e seguro.  Também no caso da modernização da administração pública há coisas vitais a fazer. Estão a fazer uma série de coisas que se percebem que no seu conjunto não vão compilar. Ainda assim, neste momento o contributo que eu acho mais importante e sobre o qual gostava que me ouvissem é sobre a arquitetura constitucional que define a governação do país e que vem do século XIX e está incompleta. Falta um conjunto de instrumentos a nível institucional, definidos na constituição, que permitam outras capacidades de articulação, de prestação de contas e de execução que neste momento não existem.

Se fosse aluno iria às suas aulas?

Ia. Porque o professor Tribolet normalmente fala de tudo menos da matéria. Fala de histórias que são interessantes e que quero ouvir porque aprendo com elas.

O que é que se aprende nas aulas do professor Tribolet?

Procura-se aprender uma coisa que é muito importante: perceber as coisas antes de as fazer, perceber o mundo- e isto é algo muito importante . Não disparar primeiro e perguntar depois. Aprende-se a ter a noção de que ser engenheiro e trabalhar com base científica é diferente de bruxaria ou de procurar evocar um santo. Há uma base e uma metodologia para, perante dadas situações e determinada causas, podermos agir de modo a termos o resultado esperado. Outra coisa muito importante que tento transmitir sempre é que é tudo feito por humanos e que nenhum de nós existe isolado. Perceber que isto se faz com pessoas alinhadas e com equipas é fundamental. Por fim, tento transmitir o gozo pela vida, porque isto é muito giro.

O professor costuma dizer que o sistema educativo é a alavanca de mudança de um país…

Claro. Nós precisamos de ter os sistemas de carbono dotados do sistema operativo e das aplicações apropriadas para que tudo funcione melhor. E isso é fornecido pelo sistema educativo. E atenção que o sistema educativo não é apenas ir às aulas, é todo este processo de programação de servidores de carbono que começa na barriga da mãe, e passa pela família, os amigos, os desportos que praticamos, etc. Tudo contribui para essa formação. E quando chegamos aos níveis universitários isto é ainda mais importante. Sou um feroz defensor que os alunos à entrada no ensino superior deviam ter um primeiro semestre de desporto radical intensivo. É isso que temos feito com o LEIC Bootcamp e que tem sido fundamental. A maior parte dos alunos não tem hábitos de disciplina, não tem noção de compromisso, e é preciso dotá-los disso. A parametrização do ser humano para viver nesta dura sociedade de hoje é fundamental e, portanto, é por aí que devemos ir.

 

“O que orientou e ainda orienta a minha carreira são as coisas que eu quero que sejam feitas, o que é que quero alcançar”

A vontade de ajudar nessa “parametrização”  é o motivo pelo qual continua a dar aulas aos alunos do primeiro ano?

Também dei muitas aulas aos alunos mais velhos. São coisas diferentes, são alturas distintas no percurso académico. Dar aulas aos mais novos é uma coisa bestial porque é a oportunidade de ajudarmos a configurá-los para uma carreira de sucesso no Técnico. Não tanto pela matéria que eu vou dar, mas usando a nossa experiência de vida, a nossa sabedoria, o nosso entusiasmo para lhes transmitir algo que os pode ajudar no percurso todo. Por sua vez, os alunos mais velhos são mais maduros e com interesse em tentar extrair de nós coisas que eles sabem que são importantes.

Sempre disse que não era o sucesso que o guiava. Então o que foi que orientou a sua carreira?

O que orientou e ainda orienta a minha carreira são as coisas que eu quero que sejam feitas, o que é que quero alcançar. Se me perguntar o que é que eu quero fazer nos próximos 6 meses sei-lhe dizer com rigor quais é que são as 4 ou 5 coisas que quero fazer. Se vou ter sucesso ou não nas coisas não é isso que me impulsiona, mas obviamente que gostava de o ter… O mais importante é sabermos para onde queremos ir, com alguma flexibilidade claro.

Do que sentirá mais falta enquanto docente?

Enquanto eu mantiver relações profissionais com pessoas de várias idades, acho que não vou sentir falta de nada. Espero continuar através de outras colaborações, nomeadamente o Técnico+, a criar essas relações. Há muita coisa que me vai manter ocupado. Tenho várias atividades e tenho muitos desafios que me estão a aparecer e que quero abraçar. Além disso e como estou ali ao lado do Técnico acho que não vou ter muitas saudades. (sorri)

 O que é que podemos esperar da sua última aula?

Vou fazer a mesma coisa que faço nas minhas aulas: não vou dar matéria, vou comentar matéria. Irei dar uma aula de engenharia organizacional, e vou tentar para uma população muito diversa explicar em que consiste. Será um testamento intelectual ao Técnico. É a minha forma de dizer: meus senhores, ou aplicamos a Engenharia ao desenho das nossas empresas, organizações e sociedade ou vamos ser controlados pelas máquinas.