E se um vírus pertencente ao microbioma humano fosse capaz de revelar detalhes sobre a evolução humana ou as migrações que ocorrem desde sempre? E se descobríssemos que esse mesmo vírus difere de pessoa para pessoa, de país para país, mas que há caraterísticas comuns e curiosas entre vários pontos do mundo, e que até pode ser usado no futuro para ajudar a tratar infeções? Parece estranho, mas está tudo muito bem explicado no estudo que é publicado hoje, 8 de julho, na revista Nature Microbiology, e do qual o Laboratório de Análises do Instituto Superior Técnico (LAIST) fez parte.
O protagonista do estudo é um vírus chamado crAssphage que foi encontrado no esgoto de mais de um terço dos países do mundo. Os resultados apurados foram fruto do trabalho de uma colaboração global que envolveu mais de 115 cientistas de 65 países em 6 continentes. O LAIST foi o único laboratório português convidado a participar da organização, tendo os investigadores Ricardo Santos e Sílvia Monteiro assumido um papel essencial na recolha das amostras portuguesas. “Os investigadores que lideram o consórcio conhecem o nosso trabalho e sabem que trabalhamos bastante em bacteriófagos [vírus] e contaminação fecal das águas”, explica Sílvia Monteiro. Este convite abriu as portas à análise deste vírus em território nacional. “Fizemos a recolha de amostra de águas residuais e também todo o tratamento em termos laboratorial e depois enviamos resultados para os coordenadores do projeto”, relembra Ricardo Santos do LAIST.
Desde o início do projeto até à divulgação dos resultados volveram cerca de 3 anos, mas a espera valeu a pena pelas conclusões inovadoras que são reveladas no artigo. A primeira de todas, e talvez a mais surpreendente, é que o vírus é diferente em todos os locais organizados. “Os vírus portugueses têm caraterísticas únicas, ou seja, não são parecidos com os espanhóis, por exemplo, que estão mesmo aqui já ao lado”, assinala a investigadora do LAIST. “Com os resultados que obtivemos dá, também, para ter uma ideia das migrações que ocorreram ao longo dos tempos até ao tempo presente”, denota ainda. Deve estar a questionar-se como é que isto é possível, mas os investigadores do LAIST explicam: “Percebemos que as migrações explicam as semelhanças entre os vírus de alguns vários países analisados. Por exemplo, no caso português é cruzado com uma parte de África, o Centro da Europa, com Hong Kong, a China e também com o Oeste da Califórnia”, declara Sílvia Monteiro.
Outra das conclusões, igualmente surpreendente, é o facto de estes vírus não serem tão recentes quanto se pensava. “Percebemos que não são assim tão recentes porque já existiam em macacos e gorilas, evoluindo connosco há milhões anos, e, portanto, acompanhando a evolução da espécie humana”, destaca, por sua vez, Ricardo Santos. Esta é mesmo a primeira vez que um estudo demonstra que os vírus do trato gastro- intestinal humano podem ser pelo menos tão antigos quanto a própria humanidade.
Ainda que detenham a designação de vírus- o que pode numa primeira análise atribuir-lhes o papel de vilões- o crAssphage pode muito bem ser um aliado do ser humano, uma vez que os seus únicos alvos- ou se preferirmos os hospedeiros- são apenas as bactérias, não havendo aparentemente nenhum malefício para o sistema humano em que habitam. E mesmo com este caráter inofensivo para o ser humano, estes conseguiram chamar a atenção dos investigadores, pelas suas características distintas. “Este vírus começou ao contrário. Não se conseguia cultivar, mas sabia-se que ele existia em grandes quantidades no ser humano, e isso despertou a atenção dos investigadores”, refere Sílvia Monteiro.
Dadas as suas especificidades, este vírus poderá “ajudar a detetar a origem de fontes contaminadas, o que é muito importante com a questão das alterações climáticas e com a falta de água potável”, como explana Ricardo Santos. Além disto, o vírus pode ser usado em terapia fágica, ou seja, no tratamento de infeções bacterianas. “Quando conseguimos libertar os bacteriófagos [vírus] de maneira controlada eles chegam à bactéria, injetam o seu material genómico para dentro da bactéria, e vão-se reproduzindo até que a bactéria rebenta, matando-a”, elucida Sílvia Monteiro.
Por todas estas conclusões que decorrem do estudo e também pela sua prestigiante publicação na revista Nature Microbiology, Sílvia Monteiro e Ricardo Santos assumem o orgulho de terem estado envolvidos no mesmo. “Foi uma experiência muito recompensadora fazer parte de um consórcio global projetado para investigar este vírus”, frisa Silva Monteiro. “No futuro e no decorrer dos resultados deste estudo podem ser desenvolvidos outros que se foquem nas várias conclusões obtidas”, vinca Ricardo Santos. Relativamente ao envolvimento do LAIST em estudos futuros, o investigador garante que é quase certo: “Temos garantias que vamos continuar com este estudo num dos consórcios mais pequenos que se vão formar”, adianta o investigador.