“O Prémio Nobel da Química 2019 vai para um mundo recarregável”, resumia esta quarta-feira, 9 de outubro, o comité que atribui o galardão. John B. Goodenough, M. Stanley Whittingham e Akira Yoshino, foram os laureados pelo trabalho realizado no “desenvolvimento das baterias de lítio” que revolucionaram a tecnologia, impactando diversas áreas. No Técnico há quem trabalhe no mesmo sentido que estes três cientistas, há também quem já tenha trabalhado com um deles, e há sobretudo um contentamento geral pelo reconhecimento que este prémio traz à área das baterias de lítio.
As baterias de ião lítio reconhecidas pelo Prémio Nobel da Química “alteraram profundamente o nosso modo de vida e a forma como interagimos e como comunicamos”, afirma a professora a Fátima Montemor, docente do Técnico e investigadora do Centro de Química Estrutural (CQE). “Já não conseguimos sobreviver sem as baterias de lítio que estão nos nossos telemóveis, computadores, eletrodomésticos, carros, etc. Estamos na era do lítio”, sublinha ainda a docente que não hesita em afirmar que pelo seu impacto no mundo esta distinção “é muito merecida”. Leves, recarregáveis e potentes, as baterias de iões de lítio conseguem armazenar uma grande quantidade de energia num espaço relativamente pequeno, e é nelas que assentam os desenvolvimentos registados nos carros elétricos de longo alcance e no armazenamento de energia de fontes renováveis, como energia solar e eólica.
Cada um dos laureados teve um papel diferente no desenvolvimento destas baterias, e em diferentes frentes contribuíram para a usabilidade e impacto que as carateriza hoje em dia. Stanley Whittingham – da Universidade de Binghamton- foi quem iniciou a caminhada quando, nos anos 70, em plena crise petrolífera, se propôs a desenvolver uma nova estratégia tecnológica que permitisse contornar a utilização dos combustíveis fósseis para produzir energia. Começou por investigar os materiais supercondutores e descobriu um material extremamente rico em energia, que usou para criar um novo cátodo (o lado positivo da bateria) numa bateria de lítio. John Goodenough – da Universidade do Texas em Austin – conseguiria duplicar o potencial das baterias de lítio, criando as condições certas para que estas se tornassem mais eficientes e potentes. Com base nessas investigações pioneiras dos dois americanos Akira Yoshino – da Universidade Meijo–deu o passo seguinte e criou a primeira bateria de lítio comercializável, com iões de lítio, leve e que podia ser carregada inúmeras vezes sem se deteriorar. “Estes cientistas desempenharam um papel fundamental ao perceber que o segredo para armazenar mais energia e de uma forma mais rápida e eficiente residia no desenvolvimento de novos materiais”, sublinha a professora Fátima Montemor. Além do reconhecimento do trabalho destes “três gigantes” – como os define, a docente do Técnico acredita que este Nobel “evidencia a relevância do tema na Química e nas disciplinas que com ela se relacionam”.
O professor Paulo Ferreira, docente do Técnico e investigador no Laboratório Ibérico Internacional de Nanotecnologia (INL) conhece de bem perto esta área e um dos premiados. Foi professor da Universidade do Texas durante 16 anos, e trabalhou com John Goodenough. Os gabinetes apenas separados por uns escassos 5 metros torná-los-iam conhecidos, e as baterias de lítio encarregar-se-iam de os aproximar ainda mais. “A minha área de investigação relacionada com a caracterização de materiais e da microscopia eletrónica era necessária na investigação do grupo dele e por isso colaboramos várias vezes”, recorda o professor Paulo Ferreira. Escreveram um artigo juntos, estiveram envolvidos em várias atividades, co- supervisionaram um aluno de doutoramento, e tiveram inúmeras “discussões cientificas excelentes e saudáveis” que o docente do Técnico não esquece.
Há várias razões para o professor Paulo Ferreira considerar o reconhecimento desta área “uma grande notícia para a sociedade científica e para a sociedade em geral”, e não passam todas pela ligação pessoal a um dos laureados. “Em primeiro lugar é uma declaração clara de que esta área é importante e vai ter um impacto significativo no futuro”, começa por elencar o docente. A outra das mensagens importantes que o docente do Técnico vislumbra neste prémio é a da interdisciplinaridade, “a chamada inteligência contextual”. “O John Goodenough é um físico que trabalha em Química. Já há algum tempo que se discutia dentro da comunidade científica que o facto de ele não ter recebido até agora o Prémio Nobel se prendia com isto”, aponta o investigador no INL. “Mas cada vez mais se fala da preponderância e vantagens das pessoas deixarem os seus silos isolados e passarem a ter uma postura mais interdisciplinar e abrangente, e este Nobel sublinha essa ideia e os ótimos resultados dessa interdisciplinaridade”, complementa. Para além disto, para o professor do Técnico esta distinção é “a celebração do trabalho permanente e do humanismo, uma vez que o John além de ser excecional cientificamente é de facto um modelo como pessoa”. “Para além da alegria que é contagiante, tem uma dedicação, um foco, uma ética e uma simplicidade admiráveis”, afirma.
“As potencialidades desta área de investigação são enormes”, destaca a professora Fátima Montemor referindo que os investigadores do Técnico não são alheios às mesmas. “Temos várias pessoas a trabalhar nesta área, quer no desenvolvimento de baterias de lítio mais eficientes quer de novas soluções alternativas para armazenar energia, como por exemplo baterias assimétricas e supercondensadores redox”, frisa. O seu grupo de investigação, por exemplo, dedica-se ao desenvolvimento de novos cátodos e de materiais que servem para baterias de lítio, mas não só. “Trabalhamos essencialmente já com vista a dispositivos alternativos, ou seja, outros dispositivos”, explica a docente.
Por sua vez, a investigação do grupo do professor Paulo Ferreira procura relacionar a estrutura atómica dos materiais com as propriedades. “Para fazer essa ponte uso microscópios eletrónicos de transmissão que permitem olhar para essas estruturas atómicas. E a área em que me foco é precisamente a das baterias”, expõe o docente do Técnico. “Pego nessas formulações químicas que estão já sintetizadas e depois há todo um processo de entendimento de como é que o material funciona o que permite pensar em outras formulações”, esclarece.
Apesar do enorme impacto que já tem nos nossos dias, esta “revolução tecnológica” – como o comité do Prémio Nobel se referiu às baterias de lítio – não se fica por aqui. Segundo a professora Fátima Montemor podemos esperar muito desta área no futuro, nomeadamente “novos materiais, com novas propriedades químicas que vão permitir duas coisas: que se gaste menos lítio numa bateria e o desenvolvimento de soluções alternativas como, por exemplo, as baterias de sódio”. O professor Paulo Ferreira não podia estar mais de acordo relativamente à evolução na área, e destaca a enorme preponderância das baterias nas chamadas áreas do futuro. “Este tipo de baterias vai ser essencial para o desenvolvimento de sensores, utilizados no corpo humano, edifícios, automóveis, e em muitas outras aplicações”, explica. Por outro lado, “se no futuro, utilizarmos energia solar como principal fonte de energia, teremos sempre de ser capazes de a transportar e subsequentemente armazenar essa mesma energia, e para tal serão necessárias baterias”, sublinha o docente do Técnico.
Tendo como intuito debater e cativar mais pessoas para a área, a professora Fátima Montemor e o professor Paulo Ferreira organizam hoje no INL uma conferência internacional sobre a área. “Há um interesse crescente da comunidade científica em Portugal para esta área e acho que este prémio trará uma nova visibilidade, mostrando o seu significado, ajudando a concentrar esforços e cativar investimento”, salienta o professor Paulo Ferreira. Ainda sem saberem que o docente venceria o Nobel, decidiram que mesma deveria contar com um testemunho em vídeo de John Goodenough, afinal não há melhor maneira de inspirar o futuro do que com alguém que construiu a rampa para o mesmo.