Os dados recolhidos pelo Observatório Pierre Auger, fundado há mais de duas décadas, têm permitido desvendar alguns dos enigmas que rodeiam as partículas cósmicas mais energéticas algumas vezes detetadas, com energias que podem ultrapassar os 1020 eV (o que corresponde à energia macroscópica de 16 joules). Estas partículas são predominantemente núcleos de átomos de diversos elementos (do hidrogénio ao silício) e chegam até nós de fontes astrofísicas fora da nossa galáxia.
Estes dados passarão agora a estar disponíveis de forma aberta, numa lógica de open data, sendo que este mês a Colaboração Pierre Auger já tornou públicos 10% dos mesmos. “Estão acessíveis a todos aqueles que, com diferentes objetivos, possam beneficiar com a sua utilização: não apenas à comunidade científica em diversas áreas relacionadas da física de partículas à astronomia, e à formação avançada em qualquer parte do mundo, mas também a todos aqueles que os queiram utilizar no âmbito de projetos educativos ou de divulgação científica, assim como em projetos de ciência feita pelos cidadãos”, é referido no comunicado de imprensa.
Desta forma, a Colaboração Pierre Auger reforça o seu compromisso com o paradigma da Ciência Aberta nas suas diversas componentes: à política de acesso aberto aos resultados científicos juntam-se os dados e os códigos abertos, promovendo também a criação de redes abertas de ciência e de Ciência cidadã. O objetivo passa por aumentar a quantidade e diversidade de pessoas com acesso real à ciência, aumentado assim o potencial de desenvolvimento global.
Os dados do Observatório estão acessíveis a partir do site da colaboração Pier Auger e do LIP, e incluem os dados “em bruto” diretamente recolhidos pelos instrumentos, mas também dados já tratados por programas de reconstrução e análises com diversos níveis de complexidade, permitindo uma utilização mais alargada dos mesmos. São também disponibilizados programas que permitem analisar os mesmos, assim como toda a documentação associada.
Ralph Engel, o responsável máximo da Colaboração Pierre Auger, salientou que “estes dados são o resultado de um amplo e duradouro investimento científico, humano e financeiro feito por uma grande colaboração internacional. São de excecional valor para a comunidade científica mundial”. Prevê-se que mais dados sejam progressivamente tornados públicos.
O papel da equipa portuguesa no estudo dos raios cósmicos
Mais de 400 cientistas, de 90 instituições em 18 países de todo o mundo, trabalham juntos no Observatório Pierre Auger, que começou a ser construído em 1999. Portugal tornou-se membro em 2006, e desde então que o Laboratório de Instrumentação e Física Experimental de Partículas (LIP) tem um núcleo de investigação ligado ao Observatório. A equipa de investigação portuguesa é atualmente liderada pelo professor Pedro Assis, docente do Departamento de Física (DF), a quem se juntam outros docentes do Técnico e também investigadores dos pólos do LIP nas Universidades de Lisboa, Coimbra e do Minho.
Desde 9 de Maio de 2017 que Instituto Superior Técnico tem uma sala de controlo remoto das experiências do Observatório Pierre Auger e da Colaboração do Compact Muon Solenoid – um dos quatro detetores do grande acelerador do Laboratório Europeu de Física de Partículas (CERN), perto de Genebra (Suíça). A sala pertence ao LIP e evita que os investigadores tenham de se deslocar até à América do Sul sempre que chega a hora do seu turno. “Esta sala é um espelho da sala de controlo que existe no campus central que se encontra na cidade de Malargue, província de Mendoza, na Argentina”, explica o professor Pedro Assis.“Estes turnos são obrigatórios e partilhados pela colaboração e são essenciais para o correto funcionamento do observatório”, adiciona o docente do DF.
Dado o contexto de pandemia, a sala tem tido uma dinamização mínima para proteção de todos. “Pusemos a hipótese de efetuar os turnos a partir de casa, mas a colaboração exige que sejam efetuados numa sala ‘certificada’ com o equipamento certo e segurança nas ligações remotas”, refere o docente do Técnico. Dentro de algumas semanas, a equipa vai efetuar turnos de operação remota dos detetores de fluorescência.
Nos últimos anos, os investigadores do LIP estiveram envolvidos no desenvolvimento do projeto MARTA, um esforço conjunto Portugal-Brasil para medir diretamente a componente muónica dos chuveiros utilizando detetores de câmaras de placas resistivas (RPCs) instaladas por baixo dos detetores de Cherenkov. “Os detetores de Cherenkov, tanques de água com 1.2 metros de altura, funcionam como absorvedores de outras partículas e apenas os muões chegam às RPC onde são detetados”, evidencia o professor Pedro Assis.
Existem detetores portugueses no Observatório Pierre Auger há alguns anos, muitos desenvolvidos pela equipa do LIP. “Nós temos detetores no campus do Observatório para calibração de outros detetores que foram desenvolvidos como protótipos do projeto MARTA. Eles foram aproveitados para fazer instalações experimentais que permitem a calibração de outros detetores”, explica o docente do Técnico. “Tecnicamente chamam-se hodoscópios e permitem estabelecer que passou uma partícula e definir a sua trajetória. Assim, permite-nos perceber qual a resposta de outros detetores a estas partículas”, adiciona, ainda, o líder da equipa portuguesa.
O trabalho da equipa do LIP foca-se muito na compreensão da física destas partículas muito energéticas e na melhoria da sua deteção. “Tenta-se perceber como são as primeiras interações no topo da atmosfera. Para isso é necessário modelar o seu comportamento e comparar com o esperado no chão”, salienta o docente do DF. “O LIP tem dado contributos na melhoria da informação recolhida no chão com novos detetores, importantes no desenvolvimento/aperfeiçoamento das simulações utilizadas e nas ferramentas de análise. Temos em vista provar a relação entre características da interação inicial que se dá a energias superiores às possíveis de alcançar em acelerador e a assinatura deixada na superfície terrestre”, acrescenta o docente.